CIÊNCIA E ENSINO

Maus-tratos contra crianças e adolescentes

Maus-tratos, ou abuso ou violência doméstica ou intrafamiliar, caracterizam-se como toda ação (abusos físico, sexual e psicológico) ou omissão (negligência e psicológica) por parte do adulto responsável ou cuidador, permanente ou temporário, que possa resultar em agravos ou prejuízos ao desenvolvimento físico, psicológico, moral, intelectual ou social da criança ou do adolescente, com o risco de deixar marcas definitivas em seu desenvolvimento. Encontra-se muitas vezes oculta e disfarçada pelas famílias, mas deve ser considerada uma das doenças mais destrutivas e que deixa sequelas, especialmente para o ser em desenvolvimento.

É considerada doença pelo Ministério da Saúde, sendo, na maioria dos casos, complexa, crônica, progressiva, “contagiosa”, intrafamiliar ou doméstica e passada de pais para filhos. Nesses casos, tem-se o crime de maus-tratos, conforme o artigo 136 do Código Penal Brasileiro.

Os casos de violência doméstica que deixam sequelas ou provocam a morte são, em sua maioria, resultado de agressões rotineiras, com várias ocorrências e relatos de atendimentos anteriores em serviços de emergência, portanto evitáveis, se reconhecidos e tratados em tempo hábil.

Uma grande proporção dos atendimentos tidos como “acidentais” (não intencionais) em serviços de emergência são, na verdade, casos de traumas intencionais, identificáveis por sinais e sintomas comuns tanto nas vítimas como nos agressores, que permitem fazer a suspeita, a notificação aos órgãos de proteção legalmente responsáveis e o desencadeamento das ações de proteção das vítimas – crianças ou adolescentes.

As causas externas de morbimortalidade compreendem os traumas auto ou heteroinfligidos, com caráter de intencionalidade (violências) ou não (acidentes), que determinam danos à integridade física, mental e social das pessoas.

Ao se analisar as taxas de mortalidade por causas externas, a violência não fica evidente na sua totalidade. Muitas das situações de violência não são notificadas e, mesmo nos traumas ditos “acidentais”, tem-se uma grande parcela de negligência ou intencionalidade direta de dano por parte dos cuidadores.

Estatísticas sobre a incidência da violência na infância e adolescência ainda são bastante falhas, especialmente pela falta de reconhecimento do que é abuso/violência, do seu diagnóstico e da notificação. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em média, seis a cada 10 crianças e adolescentes no mundo todo (quase 1 bilhão) com idades entre 2 e 14 anos são submetidos regularmente à punição física por seus cuidadores e punições físicas graves ainda ocorrem em muitos países, afetando uma em cada cinco crianças. Enfim, continua a ser parte muito real da vida de crianças e adolescentes ao redor do globo, independentemente de suas situações econômicas, sociais, culturais, religiosas ou étnicas.

No Brasil, de acordo com o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS – acesso disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violebr.def) –, foram registrados nos anos de pré e pós-pandemia, 2019 e 2022, respectivamente 405.497 e 509.150 casos de violência e, em 2020 e 2021 (anos de pandemia), por ordem, 326.502 e 225.455 casos. Em pessoas de 0 a 19 anos de idade em 2019 e 2022, representou 38,40 e 37,10% do total, enquanto em 2020 e 2021 estes percentuais foram de 36,80 e 35,96%. Importante destacar que 2019 e 2022 foram anos de pré e pós-pandemia e que, em 2020 e 2021, devido à pandemia por Covid-19, certamente menos notificações ocorreram e, por isso, dificilmente saberemos os dados reais nestes dois anos.

Todas as formas de violência requerem suspeita diagnóstica, tratamento e determinação do nível de gravidade e risco para o desencadeamento de medidas de proteção, de acordo com o tipo de violência, agente agressor e seu vínculo com a vítima. É importante o reconhecimento de formas “silenciosas” de maus tratos, frequentes, mas raramente diagnosticadas, como a violência psicológica – que permeia todas as outras formas, as diversas formas de negligência, a síndrome de Munchausen por procuração e a alienação parental, que requerem perspicácia do pediatra, assim como capacidade de saber integrar os conhecimentos médico-científicos, jurídicos e de gestão à sensibilidade ética e humanitária numa única abordagem. Fundamentalmente isto requer que os profissionais da área da saúde trabalhem em equipe multiprofissional – outras especialidades médicas, enfermagem, psicologia, serviço social, que conheçam o encaminhamento juridicamente lícito e a forma eticamente adequada do atendimento a crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos.

Muitas crianças e adolescentes trazem em sua bagagem histórias de violências e sofrimentos que se sobrepõem a todas as suas potencialidades, determinando para elas uma vida de menor valor e de baixa autoestima, podendo causar prejuízos na estruturação da personalidade, dificuldade de sociabilização, destrutividade, auto destrutividade (drogadição, alcoolismo, atitudes masoquistas, suicídio), insensibilidade social (falta de empatia, solidariedade, compaixão etc.) e delinquência.

É fundamental que, frente a um caso suspeito de violência na infância e adolescência, avaliem-se os sinais e sintomas e as consequências destas agressões. Crianças ou adolescentes que estiverem sofrendo risco de morte, de revitimização e apresentarem lesões graves devem ser internadas. O acompanhamento das vítimas e suas famílias deve ser rotina, constando a suspeita diagnóstica precoce e o desencadeamento das medidas de proteção necessárias.

Um olhar especial também precisa ser dado aos casos de tentativas de suicídio e o suicídio levado a êxito, que podem ter sido desencadeados por outras formas graves de violência crônica intra ou extrafamiliar (bullying, cyberbullying, jogos perigosos, urbana, social, institucional, populacional).

Ficam algumas questões fundamentais para nós, médicos:

  • Qual é o nosso compromisso profissional de nos capacitar para suspeitar e diagnosticar a doença violência?
  • Como não pudemos olhar e ver o sofrimento da criança?
  • Como ninguém foi capaz de perceber ou suspeitar anteriormente?
  • Será que é, da nossa parte, omissão, imperícia, receio de represálias ou de ameaças?
  • Ainda consideramos a notificação como invasão de privacidade familiar?

Não podemos nos esquecer de nossos deveres moral, legal e ético, de fazer o diagnóstico da violência por ação ou omissão, tratar e proteger nossas crianças e adolescentes, mesmo de casos só suspeito.

Apesar de termos conseguido avançar significativamente na identificação do fenômeno e ter uma legislação protetora, por que ainda temos tanta violência contra crianças e adolescentes?

Disponibilizamos nos links abaixo o Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes vítimas de Violência – 2ª edição – lançado em 2018, pela Sociedade de Pediatria de São Paulo, Sociedade Brasileira de Pediatria e Conselho Federal de Medicina:

https://www.spsp.org.br/downloads/Manual_Atendimento_Crian%C3%A7as_Adolescentes_V%C3%ADtimas_Viol%C3%AAncia_2018.pdf

https://redacao.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/LIVRO_FINAL-Manual_de_Atendimento_as_Criancas_e_Adolescentes_Vitimas_de_Violencia-compressed.pdf