O que o cientista e a criança têm em comum? A curiosidade. E é por causa dela que Bel, a protagonista de “Bel, a experimentadora”, é levada para diversas aventuras que abordam os mistérios que estão ao nosso redor, ao redor da natureza.
Bruno Gualano é professor do Departamento de Clínica Médica, pesquisador do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP e o autor do livro. E, nele, aborda curiosidades que ajudam a compreender melhor o mundo, além de citar nomes conhecidos, como Galileu Galilei e Marie Curie.
A Ciência sempre foi vista como de difícil entendimento e distante do grande público, restrita à própria comunidade acadêmica. Por isso, o livro “Bel, a experimentadora” tem como papel central ser uma fonte de educação cientifica, mas de forma divertida, com linguagem acessível às crianças. Assim, o interesse é despertado e mantido ao longo das 32 páginas, ilustradas por Catarina Bessel, surgindo o letramento científico.
O livro conta que Bel, uma criança que começa a descobrir o mundo pela experimentação, acha esse método monótono, principalmente por fazer tudo sozinha. Ao convencer seus amigos das casas vizinhas, que moram na Rua Marie Curie, que todo mundo pode experimentar, eles começam a participar de vários experimentos e a entender as razões científicas. A ideia é mostrar que ninguém tem explicação sobre tudo, mas, ao mesmo tempo, todo mundo sabe pelo menos alguma coisa. Todos têm várias formas de enxergar o mundo: pela religião, pelos saberes populares passados pelas gerações e pela própria Ciência, que ajuda a ter pensamento crítico sobre as ações e as consequências. Além disso, a protagonista, além de menina, é negra para mostrar que a Ciência é para todos.
Publicada em janeiro de 2023 pela Moah! Editora, a obra é a primeira de uma coleção chamada Bel: Ciência para Crianças, que tem como objetivo explicar fenômenos da natureza, sociais e tecnológicos sob o ponto de vista da Ciência para as crianças.
Na primeira tiragem, mais de 5 mil crianças hospitalizadas e de projetos sociais já receberam o livro. Instituições como Instituto da Criança e do Adolescente (ICR), Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), Hospital AC Camargo, Instituto do Coração, Colégio Estadual de Tempo Integral José Dias de Sales (BA) e Instituto do Câncer do Estado de São Paulo.
Bruno Gualano é pós-doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo e tem como linha de pesquisa fisiologia integrativa e do exercício e Medicina do estilo de vida.
Como surgiu a ideia da coletânea da Bel: Ciências para Crianças? Por que falar da ciência para o público em geral e principalmente com as crianças? Por que desmistificar a ciência?
Bom, eu sou cientista e a minha atividade profissional é produzir ciência, produzir conhecimento a partir do que a gente chama hoje no mundo moderno de ciência. Então, é o meu treinamento e o meu ofício também. Nós que trabalhamos com ciência temos o grave problema de divulgar as nossas informações, os conhecimentos obtemos em nossos laboratórios, na clínica, na nossa prática, somente àquelas pessoas.
Eu brinco que são aquelas seis, sete pessoas do mundo que sabem o que a gente faz e fazem a mesma coisa que nós. E a nossa linguagem não é boa. Infelizmente, a linguagem científica é difícil para o público entender. É uma linguagem que não atende, portanto, aos anseios da sociedade. E isso nos distancia muito das pessoas que não são cientistas, ou seja, a imensa maioria delas.
Então, justamente nesse esforço de comunicar melhor a ciência, porque, a partir disso, as pessoas conseguem ter a dimensão da importância que esta tem para a sociedade. Só assim é possível perceber essa importância. A partir daí, surgiu essa ideia de criar um livro infantil, quer dizer, uma coleção infantil. Bom, a gente sabe que o letramento científico é fundamental para tomarmos boas decisões em nosso cotidiano.
Ou seja, as pessoas que pensam cientificamente são aquelas que realmente são capazes de tomar as melhores decisões, são capazes de, por exemplo, compreender, para em uma questão específica na Pediatria, a importância do aleitamento materno. São aquelas capazes de entender a importância da vacinação e, assim, tomar a decisão de vacinar os seus filhos.
Quer dizer, tudo isso passa por conhecimento científico, uma aceitação das evidências científicas. No lado oposto a isso, a gente tem um negacionismo científico ou a ignorância da ciência. Então, o letramento científico forma uma sociedade capaz, nesse sentido, de entender a importância das questões científicas e aplicar o conhecimento científico no nosso dia a dia, no nosso cotidiano.
Nada melhor do que a gente começar com a idade infantil, a idade pediátrica, realmente. Então, é um dever nosso, inclusive, como diz a ONU, de levar a ciência, inclusive como patrimônio cultural da humanidade, para as crianças. Nesse sentido, a gente fez esse esforço de escrever no linguajar acessível. Não sou um escritor profissional, sou um cientista, mas gosto muito de escrever, de comunicar ciência.
É um esforço que a gente fez no sentido de levar um pouquinho a importância da ciência em nosso dia a dia, no linguajar infantil. Claro que eu faço isso de uma maneira muito leve, de modo que as crianças consigam compreender, porque tem duas formas de comunicar ciência: uma pelos seus métodos, seus ritos, que a gente costuma transmitir na graduação, na pós-graduação e no nosso trabalho acadêmico, e a outra mostrando a importância, como eu disse, da ciência para a sociedade. A inter-relação da ciência com as coisas da sociedade. A gente trilhou esse segundo caminho, e eu espero que o resultado tenha sido bem-sucedido. A gente tem até agora recebido bons retornos dos profissionais, dos adultos, claro. Mas o que me deixa mais contente é o retorno realmente das crianças. Então, esse é o preâmbulo geral dessa coletânea.
O senhor acha, então, que a literatura infantil pode ser um veículo para transformar e educar as novas gerações? Por quê?
Eu acredito que sim e acredito muito no poder do livro e da leitura. É algo que se perdeu ao longo do tempo. Uma geração mais conectada com telas e com redes sociais e tudo mais. Mas não significa que hábitos passados devam ficar no passado. Então, o hábito da leitura é absolutamente essencial. E eu acho que a gente precisa resgatar isso de certa forma.
E a literatura em especial que fale sobre ciência é bastante escassa, principalmente no cenário nacional. Antes de produzir essa coletânea, obviamente, fiz uma busca para entender quais livros infantis se propunham a falar de ciência para as crianças. E, para minha surpresa, encontrei pouca coisa, especificamente livros nacionais com cenários nacionais, com personagens que sejam genuinamente brasileiros.
Então, o livro também tem essa pegada de trazer essas marcas da cultura brasileira para enredar essa história da Bel. E, sim, obviamente acredito realmente no poder transformador da leitura e em especial, de uma leitura que tem essa missão de incutir essa sementinha do pensamento científico para a população infantil.
A Bel é uma protagonista menina e especificamente negra. Qual foi a preocupação de retratá-la assim? É para falar sobre equidade de gênero, mostrar que a menina também pode ser cientista?
Bom, uma das mensagens que a gente quer trazer com esse livro é que a ciência está em tudo, que foi a primeira discussão que a gente teve. Em segundo lugar, que ela é para todos e para todas, ou deveria ser. E a mensagem é que ela deveria ser. Ela é ou não é? Não! A gente sabe que não. Infelizmente, ela está longe disso. Há uma sub-representação muito grande de mulheres na academia. Há uma sub-representação muito grande de negros na academia, e a gente precisa chamar a atenção para isso também. Então, não à toa, Bel é negra, é menina e é experimentadora. É ela que conduz a história, que traz os questionamentos científicos, que pensa as coisas do dia a dia pelo olhar da ciência. Então, a mensagem que a gente quer passar, e eu gostaria muito que a imagem tivesse esse signo realmente da criança que olha para esse livro que é negra, que a menina se enxergue na personagem e fale: “Poxa, parece comigo essa personagem”. É uma personagem que não tem carinha de europeu, não é loirinha, não é do olho claro. É uma personagem tipicamente brasileira, e eu acho que o livro traz essa mensagem. Importante destacar que é uma crítica que eu faço também à ciência.
Dessas crianças que o senhor tem recebido feedback, já conseguiu perceber um instinto de curiosidade, não para virar cientista, mas para despertar para coisas novas ou até mesmo pra leitura?
Já consigo perceber algum feedback assim. Na verdade, a criança é instintivamente curiosa. Eu acho que cabe aos adultos incentivarem essa veia curiosa das crianças, essa ânsia pela descoberta do mundo. Às vezes, a gente cerceia muito as crianças quando fazem perguntas específicas que para a gente não tem muito sentido, né? Eu costumo dizer que os pais, profissionais, educadores em geral devem sempre estimular essa característica natural que a criança tem pela descoberta do mundo.
O que o livro traz, talvez de diferente, é que é possível experimentar o mundo, quer dizer, descobrir o mundo, fazer essas perguntas a respeito da natureza, das coisas, da vida e do ambiente social também, que nos cerca da sociedade em si e a partir dessa visão científica que só vai se revelar, que se chama ciência, ao longo do livro.
No início, é a brincadeira de experimentar o que pode ser algo que venha da curiosidade, mas que pode ser algo muito gostoso. Perguntar sobre as coisas é muito legal. É a brincadeira que a gente leva a sério aqui na academia. Nós somos profissionais na pergunta da dúvida e não tanto nas respostas, porque às vezes não temos as respostas que gostaríamos de ter de forma definitiva.
Mas nós temos mais perguntas. Então, a ciência acaba sendo, no fim, mais uma atividade de perguntar, de interrogar as coisas do mundo do que de responder às coisas do mundo. Pelo menos é o resultado mais concreto que se tem a partir dessa atividade que a gente chama de ciência. E eu passo por isso no livro. Claro, de uma maneira delicada.
É uma maneira dedicada à linguagem infantil, mas para mostrar que realmente é uma brincadeira possível, a brincadeira de experimentar, de questionar as coisas. Quando colocamos um monte de demarcações e de regrinhas, o que chamamos de ritual científico, método científico, nós transformamos na ciência profissional.
Mas tanto a ciência profissional quanto essa habilidade de se questionar e de questionar o mundo, partem do mesmo ponto, que é exatamente a curiosidade.
Como é possível obter o livro?
O projeto compreende basicamente na doação de livros. Então, nós temos 80% dos livros que são dedicados à doação para projetos infantis e especialmente hospitais pediátricos. Já fomos recebidos pelo Instituto da Criança e do Adolescente, pelo A.C. Camargo, pelo Itaci, aqui também vinculado ao complexo HCs. Fizemos doações para projetos sociais e escolas também em municípios muito vulneráveis, que nos procuraram para trabalhar o livro pedagogicamente. O Hospital Darcy Vargas também nos recebeu. Quer dizer, se vocês são vinculados a hospitais que têm interesse em receber uma doação, é só mandar e-mail pra [email protected] e me procurar. E a gente tem 20% das cópias que são destinadas a fim de expor por aquisição particular. Eu sugiro que as pessoas busquem no site da Moah! (https://moaheditora.com.br/letramento-cient%C3%ADfico/), a editora que gentilmente aceitou editar o livro. Produzi esse livro e aqui eu aproveito para dar os créditos também a Helô, que é a proprietária da editora e também à nossa querida Catarina, ilustradora do livro.
Então, eu divido qualquer tipo de mérito que esse livro possa ter com a Catarina, que é uma artista plástica brilhante, cujo trabalho complementou muito bem a escrita narrativa. A gente fez uma dobradinha bem legal, adorei trabalhar com ela, que também ilustrará os próximos volumes.
Falando nos próximos volumes, já há previsão para lançamento dos demais?
Sim, há uma previsão e esse livro inicial teve o objetivo de apresentar a Bel e a turminha toda, a turminha da Rua Marie Curie. Esse é um outro ponto interessante que eu queria destacar. Essa coletânea faz menção a cientistas contemporâneos e que infelizmente já nos deixaram. Então, a gente faz uma homenagem, por exemplo, ao Galileu, que é o gatinho da Bel e o fiel escudeiro. Dadas as artimanhas das confusões e das experimentações da Bel, nós temos personagens históricos. Em todo o volume, a gente traz no final do livro uma homenagem a personagens históricos da ciência, personagens brasileiros, cientistas brasileiros e internacionais também.
A coletânea prevê outros volumes. No segundo volume, trataremos da questão da vacina, que é fundamental hoje em dia. Nós vivemos um momento muito triste, em que há uma queda importante na cobertura vacinal, uma certa hesitação das pessoas em relação à importância das vacinas. E a gente sabe que isso é fruto de um avanço de grupos de movimentos antivacina no país, que até então eram bastante contidos e agora ganharam muita força.
Precisamos contrapor a isso e disputar a opinião pública. Mostrar que a vacina é um bem da ciência, talvez um dos maiores bens que a ciência tenha criado e que as pessoas precisam ter total confiança nas vacinas que estão aí disponibilizadas pelo nosso SUS. Então, o livro é uma ode às vacinas e também ao nosso Sistema Único de Saúde, que disponibiliza as vacinas para as pessoas.
Esse livro vai se chamar “Bel e o Admirável Escudo Invisível”, em referência, claro, à vacinação. E assim como o livro anterior traz bem, faz menção, faz homenagem a Oswaldo Cruz, ao Instituto Butantã, alguns personagens históricos, cientistas históricos, inclusive da instituição, que nos ajudaram a conhecer a importância das vacinas. Temos dois próximos volumes programados, talvez para o ano que vem e o seguinte. Esperamos conseguir lançar um livro por ano até completar essa coletânea inicial, em que a gente vai falar sobre aquecimento global também, que é um tema muito importante, que precisa ser discutido com as crianças, porque será a geração mais afetada pelas nossas decisões erradas tomadas no presente, quer dizer, a minha geração tomando decisões que irão afetar as crianças no futuro.
As crianças precisam cada vez mais discutir as implicações do aquecimento global e das mudanças climáticas para a vida de todos, para a vida planetária e não só do indivíduo. Então, esse será o tema do próximo volume. E depois a gente vai falar de estigma de corpo também, que é uma questão importantíssima. Eu estou em uma fase de discussão, de conversa com outros colegas e especialistas da área para ver como que a gente vai fazer essa abordagem.
Mas a gente sabe que o estigma, em especial de corpo, gera um problema muito grande na faixa etária pediátrica, que é o bullying. E a gente quer abordar isso também sob uma ótica científica e com um linguajar bacana para as crianças.
O senhor é pesquisador do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Como é, para o senhor, além da publicação do livro, traduzir e colocar em prática os resultados dos anos de pesquisas em prol da sociedade?
A primeira coisa que eu costumo dizer que não precisa se dizer castelar. A gente precisa sair da torre de marfim da universidade, disputar a opinião pública. Não significa dizer que saberes populares tradicionais não são importantes. Existem várias formas de obtenção de conhecimento, mas a ciência inegavelmente é uma ferramenta. É um instrumento que é capaz de produzir conhecimento com bastante qualidade. Então, a gente precisa realmente parar de falar só para os nossos colegas e nos nossos congressos, nossos simpósios e conferências, para falar também para a população que é leiga e a população que não domina necessariamente o ofício de se fazer ciência.
Então, esse é o primeiro ponto de aprender a comunicar ciência e fazer isso sempre que possível. Não achar que o artigo científico até a tese publicada é o final do caminho. Eu tenho me dedicado bastante a isso. Não é fácil, porque primeiro a nossa academia não reconhece isso como o nosso trabalho. Agora nós somos desafiados por outras métricas.
Não há um incentivo nem um treinamento para se fazer isso. Então, acaba sendo como uma empreitada quase que individual, e é hercúlea de cada um que se aventura nisso. Mas isso é fundamental para que as pessoas continuem financiando e acreditando na ciência. Quando eu digo financiar, fiar a ciência, acho que talvez seja o termo adequado, mas financiar também porque a sociedade nos financia, principalmente no Brasil.
Nós temos um financiamento de verbas públicas com dinheiro público, de tudo o que a ciência faz. Então, se a gente não retornar para a sociedade com informações concretas, com evidências de que nosso trabalho vale a pena, obviamente as pessoas vão começar a duvidar disso. E nós sabemos a importância da ciência. Nós fazemos isso, estamos no dia a dia, mas não basta.
A gente precisa fazer com que as pessoas reconheçam o mérito da ciência, a importância dela e da tecnologia para uma sociedade saudável, pujante economicamente, desenvolvida intelectualmente, democraticamente e por aí vai. Precisamos realmente conversar com as pessoas, mostrar o que nós estamos produzindo de forma tal que sintam que a ciência faz a diferença no dia a dia delas.
Quando a gente faz uma refeição, vai ao médico, toma uma vacina, usa o celular, tudo isso é fruto direto da ciência. Resta saber se as pessoas sabem disso, e não é culpa delas quando não sabem. Geralmente, a culpa é nossa. A culpa é da academia que não se deixa se misturar, digamos, com a sociedade de uma maneira que elas reconheçam a importância da ciência.