Comissão Científica

Ultrassom Point-of-Care: uma revolução à beira do leito

Inspeção, palpação, percussão e ausculta têm sido, por séculos, os pilares da medicina à beira do leito, transmitidos de geração em geração. O exame físico evoluiu ao longo do tempo e segue em constante transformação, tendo um marco significativo há cerca de 200 anos com a chegada do estetoscópio. Desde a década de 1990, o ultrassom point-of-care (POCUS) vem sendo integrado à avaliação clínica à beira do leito, complementando a história e o exame físico e aumentando a acurácia diagnóstica para diversas patologias. O impacto do POCUS na prática clínica tem sido tão expressivo nos últimos 20 anos que alguns autores já sugerem a “insonação” como o quinto pilar da semiologia, marcando uma nova era na evolução do exame físico (1).

Inicialmente, o ultrassom era uma tecnologia cara e de difícil manuseio, restrita aos radiologistas, que o utilizavam principalmente para exames diagnósticos em departamentos especializados. Com a chegada de microprocessadores mais rápidos e avanços na miniaturização, esses dispositivos se tornaram muito mais compactos e acessíveis (2).

A especialidade pioneira no uso do POCUS foi a medicina de emergência. No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o POCUS começou a ser adotado como extensão de exame físico por médicos emergencistas, tornando-se uma ferramenta essencial para diagnósticos rápidos à beira do leito, especialmente em casos de trauma e situações críticas. A possibilidade de realizar avaliações imediatas no pronto-socorro transformou o atendimento, permitindo decisões mais ágeis e precisas em momentos decisivos. Tanto que, em 2001, o Colégio Americano de Médicos Emergencistas (ACEP) publicou o primeiro guideline específico para uso do POCUS por uma especialidade fora da radiologia e, desde então, recomenda o ensino curricular de POCUS em todos os programas de residência em emergência na América do Norte (3).

Na pediatria, a exemplo do que ocorreu na prática com adultos, os primeiros relatos de uso do POCUS foram descritos na subespecialidade da emergência. Em 2015, a Academia Americana de Pediatria (AAP) recomendou a inclusão do treinamento em POCUS nos programas de fellowship em emergência pediátrica, além da capacitação para médicos que atuam nessa área (4).

Um exemplo relevante do impacto do POCUS na prática pediátrica é sua utilização na investigação de pneumonia, fato tão corriqueiro no nosso dia a dia. A história e exame físico são o ponto de partida do processo diagnóstico das infecções pulmonares, no entanto, inúmeros estudos já demonstraram que a avaliação clínica isolada carece de acurácia diagnóstica para pneumonia. Uma meta-análise recente conduzida por Arts et al evidenciou que a ausculta pulmonar apresenta uma sensibilidade combinada de apenas 37% e uma especificidade de 89% para diversas patologias respiratórias agudas (5). Além disso, os critérios clínicos com frequência se sobrepõem a infecções virais, levando ao uso desnecessário de antibióticos (6).

A radiografia de tórax é amplamente utilizada em crianças com suspeita de pneumonia, pois apresenta sensibilidade razoável e alta especificidade para detectar a condição, podendo colaborar, quando disponível, na redução do uso excessivo de antibióticos. No entanto, envolve exposição à radiação, sua interpretação pode variar significativamente entre observadores e, com o advento da tomografia computadorizada (TC), sua sensibilidade diagnóstica passou a ser questionada. Um estudo em adultos no departamento de emergência - população em que a TC pode ser utilizada como padrão ouro diagnóstico, dada a menor preocupação com a carga de radiação - revelou que, em 27% dos casos, a pneumonia foi diagnosticada apenas pela TC, enquanto a radiografia se mostrou negativa ou o infiltrado passou desapercebido (7).

No contexto da pneumonia, a integração imediata do POCUS à beira do leito melhora significativamente a performance diagnóstica, atingindo uma sensibilidade de 96% (IC 94-97%) e especificidade 93% (IC 90-96%) conforme demonstrado em uma metanálise publicada no Pediatrics (8). Além de aumentar a precisão diagnóstica sem utilizar radiação, um estudo realizado pelo Hospital Sickkids, em Toronto, ainda demonstrou que, a investigação de pneumonia com POCUS no departamento de emergência gerou economia de uma hora no tempo de permanência dos pacientes e reduziu os custos do sistema de saúde em CA$187 por caso (9).

Mas, o impacto do POCUS na pediatria vai muito além do diagnóstico de pneumonia. Evidências mostram benefícios em relação à acurácia diagnóstica e à melhoria dos fluxos de atendimento em diversas situações, como detecção de derrames pleurais, tamponamento cardíaco e disfunção miocárdica em pacientes críticos, intussuscepção e abscessos cutâneos, entre outros (10).

A capacidade do POCUS de visualizar a anatomia em tempo real também levou à sua ampla utilização para guiar procedimentos como acesso venoso periférico, anestesia regional, remoção de corpos estranhos, aspiração de líquidos. Em todos esses cenários a incorporação do POCUS se relaciona com maior taxa de sucesso e menores taxas de complicações em comparação com a realização dos procedimentos às cegas. Tanto que a passagem de cateter central guiada por ultrassom é considerada hoje padrão de atendimento (11).

Vale lembrar que as avaliações ultrassonográficas com POCUS devem ser sempre focadas e direcionadas por perguntas específicas, geralmente de resposta binária (sim/não). Elas envolvem a interpretação de imagens de rápida aquisição, nas quais o observador busca um ou dois achados de fácil reconhecimento que modificarão a tomada de decisão de forma imediata. Esse formato de uso diferencia o POCUS do ultrassom tradicional realizado por radiologistas e ecocardiografistas, que envolve avaliações detalhadas de múltiplos órgãos, demanda mais tempo e responde a questionamentos clínicos mais abrangentes. Cada um desses exames tem um papel específico na investigação diagnóstica, e não se substituem.

Para assegurar que o POCUS seja utilizado dentro de seu escopo em cada especialidade, Bahner et al propuseram, em 2012, o modelo de ensino I-AIM, amplamente utilizado até os dias atuais. O mnemônico refere-se às quatro competências centrais para o uso apropriado do POCUS: (1) Indicação – conhecimento acerca das melhores evidências para uso do POCUS em determinada área de atuação, ou seja, quais perguntas podem ser respondidas com essa avaliação ultrassonográfica focada e com qual acurácia; (2) Aquisição de imagem – habilidade no manuseio do aparelho e conhecimento sobre seu funcionamento, posicionamento do paciente e do transdutor para captura apropriada das janelas; (3) Interpretação da Imagem – reconhecimento de padrões ultrassonográficos normais e alterados e por fim (4) Decisão Médica – integração dos achados do POCUS ao o contexto clínico, considerando a probabilidade pré-teste e outras modalidades de imagem para a melhor tomada de decisão em cada caso (12).

Dominar todos esses aspectos torna o desenvolvimento de expertise em POCUS uma tarefa complexa e multifacetada. Para facilitar o aprendizado de habilidades médicas complexas, recomenda-se expor o aluno a atividades que exijam somente parte das tarefas, como práticas monitoradas, revisão de imagens, intercaladas com atividades que englobem todo o processo, desde a indicação até a tomada de decisão, como discussão de casos clínicos e simulação realística (13).

Até o momento, a grande maioria dos estudos sobre ensino em POCUS focou no componente de aquisição de imagem, demonstrando curvas de aprendizado relativamente rápidas para diversas modalidades, em torno de 25 – 50 exames (14). No entanto, em relação à interpretação de imagens, um estudo canadense observou que existe uma alta variabilidade na taxa de desempenho entre os alunos e entre as modalidades. Para alunos medianos, o número necessário de imagens visualizadas para atingir uma acurácia interpretativa de 90% pode chegar a 175. Já para os alunos com menor desempenho (percentil 95) esse número pode chegar a aproximadamente 600 (15).

O ensino dessas habilidades complexas, que envolve exercícios de raciocínio clínico e prática supervisionada à beira do leito em pequenos grupos, é um processo custoso, que demanda tempo e exige a participação ativa e o comprometimento de vários membros do corpo docente de um programa de residência. Não à toa, a falta de equipe treinada em POCUS foi identificada como a barreira mais frequente ao aprendizado de fellows canadenses em emergência pediátrica, sendo um fator mais impactante que a falta de tempo ou recursos financeiros para compra dos equipamentos (16).

De uma forma geral, os programas de residência médica em pediatria têm avançado lentamente na incorporação do POCUS em seu currículo. Apesar dos avanços na educação em POCUS para subespecialidades, com recentes recomendações para as áreas de medicina intensiva, nefrologia e neonatologia (17,18,19), uma pesquisa norte-americana realizada em 2019 com programas de residência em pediatria revelou que nenhum deles possuía um currículo obrigatório de POCUS, e menos de 15% ofereciam um currículo opcional.

No cenário nacional, o Instituto da Criança do HCFMUSP foi o serviço pioneiro na implementação curricular do ensino de POCUS de forma longitudinal aos residentes de pediatria e emergência pediátrica, em 2015, com a opção extra de um estágio optativo. Em 2022, foi inaugurado na mesma instituição o programa de fellowship em POCUS pediátrico, com a objetivo de formar lideranças na área.

Apesar de a incorporação longitudinal do ensino de POCUS nos programas de graduação e residência ser a forma ideal de ensino dessa nova ferramenta, inúmeras barreiras já mencionadas tornam essa realidade pouco provável a curto prazo. Além disso, o impacto dessa ferramenta na prática clínica é tão robusto que impõe aos médicos que já finalizaram sua formação a necessidade de também se capacitar para seu uso.

Dado que o POCUS tem como objetivo uma avaliação focada, seus requisitos de treinamento necessariamente diferem daqueles estabelecidos para radiologistas ou ecocardiografistas e devem seguir as diretrizes específicas de cada especialidade, considerando as modalidades a serem ensinadas e o formato do treinamento.

Em linhas gerais, a obtenção de competência pode ser alcançada após a realização de um número determinado ou de uma faixa de exames de POCUS supervisionados por instrutores capacitados e interpretados com precisão. No entanto, devido à falta de evidência que estabeleça um número específico de exames necessários por indicação, algumas diretrizes sugerem que são necessários entre 25 e 50 exames para atingir a competência (14).

Essa recomendação, no entanto, não deve ser interpretada como uma abordagem universal, pois a complexidade dos exames pode variar, exigindo mais experiência para alcançar a proficiência. Além disso, o número de exames realizados pode não ser o melhor critério para definir competência. Como o POCUS envolve tanto componentes cognitivos quanto psicomotores, as pessoas podem desenvolver habilidades em ritmos diferentes. Dessa forma, a competência pode ser mais bem avaliada por meio de simulação, exames clínicos estruturados observados (OSCE) ou observação direta durante os atendimentos clínicos.

Há, portanto, uma demanda urgente para formação de líderes na área de POCUS, que utilizando-se de habilidades de ensino, pesquisa e gestão, possam implementar programas de POCUS em instituições acadêmicas e formar novos pediatras treinados nessa competência, assim como ocorre com a intubação orotraqueal, punção lombar e interpretação de radiografia de tórax, entre outras habilidades essenciais. Para médicos que já concluíram sua formação, torna-se fundamental buscar treinamento em centros de referência para ensino de POCUS, por meio de workshops e treinamentos imersivos, que envolvam a prática em pacientes reais, exposição ao processo de tomada de decisão e mentorias.

Além das inúmeras vantagens diagnósticas e em guiar procedimentos já mencionadas, o POCUS também tem um impacto positivo na experiência dos pacientes e suas famílias. Seu uso à beira leito envolve aspectos que sabidamente influenciam no estado emocional dos doentes, como o toque, maior tempo de interação com o profissional de saúde, escuta ativa, uso de equipamentos sofisticados e compartilhamento de imagens. Esse efeito tão observado com o uso do POCUS, foi documentado em 2024 por Balmuth et al. Nesse estudo, que aplicou questionários após atendimento, os pacientes que receberam o POCUS relataram significativamente mais satisfação e menos ansiedade após a consulta (20).

Por fim, o desenvolvimento do POCUS é uma parte importante da história da medicina, um exemplo de como a inovação conceitual pode revolucionar o uso de tecnologias antigas, abrindo novos campos na prática clínica e na pesquisa. Sua expansão na pediatria é um caminho natural, impulsionado pelo crescente corpo de evidências que comprovam sua acurácia diagnóstica, segurança, otimização de fluxos, redução de custos e carga de radiação. É essencial garantir que essa competência seja transmitida de forma estruturada, abrangendo desde a indicação criteriosa até a tomada de decisão, promovendo o uso responsável dessa ferramenta tão valiosa.

Assim, seguimos não apenas aprimorando o cuidado pediátrico, mas também inspirando toda uma geração de médicos a enxergar além do que é visível, audível e palpável.

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