José Martins Filho é ex-reitor da Universidade de Campinas (Unicamp), professor, escritor premiado com o Jabuti, apresentador de programa e palestrante no Brasil e no exterior. Contudo, sua verdadeira paixão é ser pediatra, cuidando de crianças, promovendo o aleitamento materno e fortalecendo o vínculo entre o recém-nascido e seus cuidadores. Ele também se dedica à boa formação de futuros pediatras. Em entrevista ao Boletim da Academia Brasileira de Pediatria, o acadêmico ocupante da cadeira nº 21 compartilhou sua trajetória acadêmica, sua experiência internacional e suas perspectivas sobre a formação médica.
Por que o senhor decidiu cursar medicina? E, mais especificamente, por que escolheu a pediatria?
Minha história na medicina começou com uma escolha filosófica e psicológica, pois sempre tive muito interesse na área médica. A pediatria me atraiu por sua importância no desenvolvimento humano e no cuidado das crianças. Acredito que, ao cuidar bem de uma criança, ela tem mais chances de ser feliz e se tornar um adulto íntegro, contribuindo para a sociedade. Escrevi vários livros, incluindo um sobre os primeiros 1000 dias, que destaca a importância da pediatria para o desenvolvimento integral das crianças.
Além disso, sempre me interessei pela parte psicossocial do desenvolvimento infantil, o que me levou a me aprofundar em psicanálise, psicologia e psiquiatria. Meu trabalho como pediatra vai além de tratar doenças; tenho uma paixão pela educação e pelo desenvolvimento das crianças. Escolhi a pediatria porque ela permite um trabalho intenso, que exige uma formação não apenas médica, mas também psicossocial.
O senhor foi um dos fundadores do Grupo Nacional de Estímulo ao Aleitamento Materno da SBP e um grande defensor do aleitamento materno de forma geral. Quais foram os maiores desafios enfrentados nessa luta e por que ela foi tão importante?
Minha trajetória internacional em pediatria começou com uma pós-graduação no Centro Internacional da Infância, em Paris, onde fiz um curso focado em Pediatria Social e Preventiva. Durante esse período, tive contato com conceitos avançados sobre aleitamento materno, particularmente em países da Europa Oriental e na África, que demonstraram como o aleitamento materno ajudava a reduzir doenças e mortes infantis.
Ao retornar ao Brasil, continuei meu trabalho na Unicamp, envolvendo alunos e colegas em um projeto de aleitamento materno. Fui convidado pela Sociedade Brasileira de Pediatria para dar uma conferência sobre o tema, o que resultou na criação do Grupo Nacional de Estímulo ao Aleitamento Materno, com o qual fui nomeado presidente. Essa missão me levou a percorrer o Brasil, promovendo a importância da amamentação para a saúde das crianças e enfrentando desafios relacionados à percepção social sobre as responsabilidades das mulheres.
O trabalho com aleitamento materno não foi fácil, pois enfrentávamos resistência quanto ao impacto que isso poderia ter nas mulheres, especialmente nas questões de sacrifícios e pressões sociais. Contudo, com o apoio das mulheres, conseguimos superar essa barreira e mostrar que amamentar não apenas melhora a saúde física das crianças, mas também desempenha um papel crucial em seu desenvolvimento psicológico e cerebral.
Minha dedicação ao tema me levou a ser convidado por organizações internacionais, como a OPAS e a UNICEF, para dar palestras e promover o aleitamento materno em outros países. Esse esforço global foi fundamental para que o aleitamento materno passasse a ser amplamente reconhecido não apenas como uma prática de saúde, mas também como essencial para o desenvolvimento global da criança.
O conceito dos primeiros 1000 dias de vida, e a promoção do aleitamento materno dentro desse período, se tornou uma das grandes bandeiras do meu trabalho. Fui pioneiro nesse movimento, e, como primeiro presidente do Grupo Nacional de Aleitamento Materno, continuo sendo um defensor da importância dessa prática, que é essencial para a saúde e o bem-estar das futuras gerações.
De que maneira a questão do aleitamento materno se transformou em uma política pública? E o que senhor acha que ainda precisa ser melhorado em termos de política pública para a primeira infância no Brasil?
Eu acho que é um sinal dos tempos, um sinal do desenvolvimento da medicina, sinal de desenvolvimento das escolas médicas no ensino de puericultura. Na pediatria, você tem a patologia infantil, que é aquela que trata das doenças que as crianças são acometidas, e os tratamentos médicos, psicológicos, psiquiátricos, e tem a puericultura, que é a área do crescimento e desenvolvimento de início da participação do pediatra nesse desenvolvimento infantil.
E, quando você ensina a aleitamento materno, você fala do papel da família, do pai, da mãe, dos avós. Você fala da importância do afeto, do amor, do carinho, da atenção, do pegar no colo, de ficar junto. Então, foi uma transformação que naquele momento era muito importante, porque a tecnologia somente não resolve o problema. E o aleitamento materno, além de passar substâncias importantíssimas pelo leite, dar proteção imunológica etc., ele também permite esse contato físico e amoroso, principalmente a mãe nos primeiros meses e depois o resto da família. O papel do pai no apoio à amamentação da mãe etc.
Na verdade, os primeiros 1000 dias que falam desse conjunto em que aleitamento materno é tão importante, vem desde a gestação. Aliás, hoje em dia, a gente até fala que não é mais 1000 dias, é 1100, porque fala também da gestação e fala também da saúde da mãe na gravidez; e, hoje em dia, se fala da saúde do pai para não ter mudanças no espermatozoide etc., que todos eles acabam complicando a saúde.
Na verdade, não dá para falar hoje em prevenção, em pediatria social, comunitária e preventiva, sem falar nesse aspecto. No aspecto do parto natural, da gravidez bem seguida, da nutrição da mãe e da saúde da mãe e do pai durante os primeiros momentos da gravidez.
Parto normal, a não ser que haja uma indicação médica para fazer um parto operatório. A importância disso. A importância da amamentação no momento do nascimento. Acabou de nascer, dá no colo da mamãe, manda colocar no seio. Tudo isso foi se desenvolvendo nesse período, e eu escrevi muito sobre isso em vários livros meus que tratam desse assunto.
O senhor trabalhou em vários países. Como isso foi importante para sua trajetória profissional e acadêmica?
Minha trajetória profissional me levou a trabalhar em vários países, especialmente por causa do meu papel como professor universitário. Apesar de aposentado, continuo atuando no Centro de Investigação em Pediatria (CIPED), que ajudamos a criar. Minha experiência como escritor e palestrante me fez ser convidado por organizações como a OMS e a OPAS para dar aulas em diversos países, incluindo Uruguai, Argentina, Colômbia, Japão, China, Espanha e França.
Em Paris, fiz o curso de Pediatria Social Comunitária, o que ampliou minha rede de contatos internacionais e me levou a ser convidado para dar aulas e publicar livros, como "Lidando com Crianças", que foi traduzido para vários idiomas e ganhou o prêmio Jabuti. Esses convites foram impulsionados também pelos meus livros e pela minha especialização em aleitamento materno e nutrição infantil.
Meu trabalho na área acadêmica e na pediatria, além de ser professor titular e diretor da Faculdade de Medicina da Unicamp, me possibilitou ser reconhecido internacionalmente. Fui convidado a dar palestras sobre temas como aleitamento, nutrição e desenvolvimento infantil em congressos ao redor do mundo, e também fui membro da Academia Americana de Pediatria.
Além disso, tive a honra de ser presidente da Academia Brasileira de Pediatria, uma eleição que me permitiu ampliar ainda mais meu reconhecimento. Esse cargo também me ajudou a ser convidado para congressos e eventos internacionais, reforçando minha trajetória como especialista na área.
O reconhecimento da minha atuação profissional se deu principalmente pelo trabalho que realizei com a comunidade científica e médica, o que me permitiu ser conhecido e respeitado em muitos países. A medicina, como a educação, é um campo em que o trabalho árduo e a dedicação geram frutos, e sou grato por todas as oportunidades que surgiram ao longo da minha carreira.
Agora, indo um pouco para o reconhecimento dos seus pares, o senhor ganhou vários prêmios, sendo dois, na minha modesta seleção, muito marcantes, o do Pediatra mais Admirado e um criado especialmente para laureá-lo. Como é ser reconhecido pelos seus pares?
É uma coisa maravilhosa ter o reconhecimento dos colegas que eu admiro também que me homenageiam e que me fazem colocações agradáveis, respeitosas, que eu respeito muito.
Esse último prêmio que eu ganhei da Sociedade de Cirurgia e Medicina de Campinas, sobre Humanitas pelo meu trabalho em pediatria, foi uma coisa emocionante e foi muito, muito bom, porque a minha família veio. A minha filha veio dos Estados Unidos para assistir.
Minha esposa tinha acabado de falecer, um momento bem difícil para mim, e foi uma coisa muito honrosa, porque eles não fizeram esse prêmio para mim pelo meu consultório, pelo número de clientes que nunca foi tão grande assim, porque eu também não tinha muito tempo, mas sempre atendia todos os dias crianças.
Mas foi pela história minha, pelo ensino, pela produção científica, pelos livros, pelos prêmios.
Então tudo isso é honroso. É uma coisa maravilhosa. Não é dinheiro, não é conquista. E eu nunca fui rico. Eu sou um pediatra que vive do meu trabalho, do meu salário de professor e um pouco da minha clientela, que, aliás, é muito pequena pela minha idade, pela pandemia, que acabou muito com essas coisas. Mas eu continuo atendendo quem me procura, sejam pobres ou ricos, paguem ou não paguem, eu gosto muito de atender.
Eu fico feliz quando eu vejo uma mãe sorrindo e saindo do meu consultório. E isso me honra muito, o orgulho que eu tenho de ser amigo dos colegas pediatras e outros colegas.
Meu trabalho na televisão também sempre valorizou a medicina, seja entrevistando colegas médicos na TV Século 21 ou na Globo. Como professor, amo ensinar e sinto orgulho ao ver ex-alunos bem-sucedidos. No entanto, precisamos ter cuidado com a formação médica no Brasil, pois o excesso de faculdades exige uma avaliação rigorosa para garantir que os novos médicos estejam realmente preparados para a profissão.
O Exame de Proficiência Médica tem sido uma grande discussão entre professores e órgãos reguladores, como o Conselho Federal de Medicina e o Ministério da Saúde. Em países como EUA, Canadá e Alemanha, não basta ter um diploma; é necessário passar por avaliações teóricas e práticas antes de exercer a profissão. A medicina exige conhecimento técnico, atualização constante e, acima de tudo, humanidade para atender bem os pacientes.
Além da formação, o sistema de saúde também precisa permitir que o médico tenha tempo para ouvir, examinar e diagnosticar corretamente. Muitos profissionais estão sobrecarregados, sem espaço para um atendimento mais humanizado. Com 390 faculdades de medicina no Brasil e planos para abrir mais 290, a questão não é apenas formar mais médicos, mas garantir que sejam bem treinados e qualificados para cuidar das pessoas com excelência.
Sobre a Academia Brasileira de Pediatria, da qual o senhor foi presidente. Qual é a importância dessa instituição? O que é preciso dizer pro jovem pediatra sobre a Academia?
A pediatria brasileira se divide entre a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Academia Brasileira de Pediatria (ABP). A SBP é essencial para médicos recém-formados e residentes, pois administra congressos e outras atividades profissionais. Já a ABP reúne especialistas de destaque na área acadêmica, como professores e pesquisadores, e sua admissão ocorre por meio de convite e votação.
Fui convidado e eleito para integrar a ABP devido ao meu trabalho acadêmico e, posteriormente, tornei-me presidente, cargo que exerci por quatro anos. Durante esse período, a Secretaria da Academia funcionava em Brasília, o que me proporcionou contatos frequentes com a Presidência da República e outras universidades, ampliando o alcance do meu trabalho.
A ABP tem um papel mais voltado à formação acadêmica e ao crescimento do conhecimento pediátrico, enquanto a SBP organiza eventos e congressos para atualização profissional. Ambas atuam em sintonia, promovendo o avanço da pediatria no Brasil.
Enquanto a Sociedade Brasileira de Pediatria é aberta a todos os pediatras, a Academia mantém um grupo mais restrito e selecionado, focado em discussões intelectuais e relações internacionais. Suas reuniões têm caráter mais fechado, enquanto os congressos da SBP reúnem pediatras de todo o país para atualizações e trocas de conhecimento.
E o que o senhor pode nos falar sobre a relação entre a vida universitária e a prática pediátrica? E mais, como é que conseguiu manter a atividade acadêmica, atendimento clínico e a sua vida familiar?
Minha esposa, Ionea Queiroz Bezerra Martins, sempre me apoiou na minha trajetória profissional, compreendendo minha paixão por ensinar e viajar. A vida familiar foi essencial para mim, mas minhas longas viagens, como um mês na China sem comunicação, foram desafios para todos.
Durante minha estadia na França, precisei viajar para Budapeste para estudar creches, deixando minha família em Paris. A comunicação era difícil, e a barreira do idioma tornou tudo mais complexo, mas essas experiências foram fundamentais para meu crescimento.
Com minha atuação na TV e as frequentes viagens, contei com colegas para manter meu consultório. O desafio aumentou ao me tornar reitor da Unicamp, com grandes responsabilidades acadêmicas e políticas, exigindo reuniões com autoridades estaduais.
Minha vocação sempre foi a pediatria, mas também amo ensinar, pesquisar e escrever. Estou finalizando meu 12º livro sobre desenvolvimento infantil e família. Acredito que educar exige esforço e dedicação, pois criar filhos vai além de apenas mandá-los para a escola.
E, Dr., após tantos anos de carreira, o que é que o senhor sabe hoje e que gostaria de saber quando iniciou a carreira como pediatra?
Ser médico vai além da competência técnica; é preciso ter humanidade, empatia e vontade de ajudar. Muitos médicos tecnicamente bons não conseguem suprir as necessidades dos pacientes, enquanto outros, com menos formação, se destacam pelo cuidado e paciência.
Eu costumo ligar para meus pacientes para acompanhar sua recuperação, o que surpreende muitos. Acredito que essa atenção faz diferença e tento ensinar isso na medicina. No entanto, a tecnologia avançada tem afastado os médicos dessa sensibilidade essencial.
O médico não deve olhar apenas o corpo ou o cérebro, mas o paciente como um todo, compreendendo seus sentimentos e motivos para buscar ajuda. Essa visão é fundamental, especialmente no desenvolvimento infantil, algo que aprendi ao longo da minha experiência.
Dr., o que o senhor pode nos falar sobre a sua experiência à frente de programas de TV?
Minha trajetória como professor e gestor na Unicamp me proporcionou experiência com a imprensa. Durante meu período como vice-reitor e reitor, fui incentivado pelo assessor de imprensa Eustáquio Gomes a escrever artigos para grandes jornais e a participar de entrevistas na TV. Com o tempo, desenvolvi habilidades de comunicação que me levaram a oportunidades na mídia.
Ao fim do meu mandato na reitoria, fui apresentado à TV Globo de Campinas, onde propus e conduzi um programa de entrevistas sobre saúde pública. O programa semanal teve boa repercussão e abriu portas para convites em outras emissoras, como TV USP e TV PUC. Também entrevistei autoridades e fui chamado para debates sobre pediatria quando presidia a Academia Brasileira de Pediatria.
Mais tarde, passei a trabalhar na TV Século 21, uma emissora católica com alcance nacional, onde entrevistei diversas personalidades. Atualmente, mantenho um canal no YouTube chamado Família, Amor e Cuidado, onde compartilho entrevistas que continuam sendo acessadas e divulgadas pelo público.
O senhor tem na sua trajetória trabalhos internacionais pela OPAS, pela OMS. E que agora mesmo beneficiando uma consultoria em Portugal. o que só pode nos falar sobre essas suas frentes de atuação?
Fui convidado algumas vezes pela UNICEF para atuar em nutrição infantil, mas sem vínculo oficial com OPAS, OMS ou UNICEF. Recebia apoio financeiro para viagens e estadias, permitindo-me participar de conferências e reuniões internacionais sobre aleitamento materno. Isso me levou a vários países da América Latina e até à Ásia, sempre como consultor convidado por universidades e organizações.
Quanto a Portugal, é recente, está começando essa consultoria. Dois anos atrás, eu fui convidado pela Universidade de Aveiro, o pessoal de Águeda, uma cidade portuguesa, por uma colega, a Dra. Maria Teresa Neves, que é ligada ao Ministério da Saúde português, para dar uma conferência e fazer parte de um seminário em que eu dei algumas aulas. E fiquei uma semana, dei algumas aulas e fiz grandes amizades lá em Portugal.
Essa amizade me trouxe convites importantes, e recentemente recebi um da Universidade de Aveiro, via Dra. Teresa Neves, para atuar como consultor em um programa de proteção à infância em Portugal. O projeto está no início, na fase burocrática, e minha função é orientar sobre o desenvolvimento infantil.
Estou muito feliz por ter sido convidado para este projeto e ansioso para começar. O projeto envolve assessores de várias áreas, como medicina, arte e ensino, proporcionando uma experiência completa para as crianças. Meu papel é na pediatria, e espero que, se for bem-sucedido, possa trazer a iniciativa para o Brasil com apoio governamental.