Sua iniciativa nas pesquisas do combate às causas da diarreia aguda e sua contribuição para a Pediatria Brasileira são notórias.
Conheça mais sobre a vida e a carreira deste membro da ABP.
Quando iniciei meu consultório, minhas manhãs eram livres. En- tão me ofereci para trabalho voluntário na Clínica Infantil do Ipiranga (CII). Era bom para ganhar experiência e até para me tornar conhecido no bairro. Trabalhei no Ambulatório (de graça, naturalmente) até que foi criado o Serviço de Emergência (SE) da CII e eu passei a dar plantões noturnos.
A realidade que encontrei no SE era muito diferente do ambulatório. Ambulatório atendia as famílias pobres de operários do bairro. Para o SE, eram trazidas crianças sem família estruturada de toda a cidade de São Paulo e até dos municípios vizinhos e que viviam em situação de miséria. Veja a diferença: pobreza vs. miséria.
E a mortalidade infantil era muito alta naquela época.
As crianças já desnutridas eram sujeitas a infecções repetidas, di- arreia que começava aguda e se tornava persistente, piora do estado nutricional e morte geralmente por broncopneumonia. Aí me veio a ideia pioneira de investigar a causa da diarreia. Se a criança morria de diarreia, qual era a causa dessa diarreia? A gente sabia que era bacteriana. Vírus nem se falava na época, mas realmente a grande maioria das diarreias era causada por bactérias entero- patogênicas, provenientes das más condições higiênicas. Essas bactérias entravam pela boca e invadiam o intestino. Shigelas e salmonelas já eram conhecidas, mas não explicavam a maioria dos casos. Fizemos estudos avançados usando coprocultura, isto é, cultura das fezes. E descobrimos que a bactéria causadora era a Escherichia coli enteropatogênica, particularmente a do sorogrupo O111. Aí, veio a lógica: bactéria se trata com antibiótico. Mas a E. coli era uma bactéria muito resistente aos antibióticos. Tentamos os melhores antibióticos até chegarmos à conclusão de que antibiótico não era a solução. O ideal era a profilaxia mantendo um bom estado nutricional e imunológico do bebê. Como conseguir isso na prática, já que as condições socioeconômicas das famílias não eram boas? Evitando o desmame precoce e mantendo o aleitamento materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida e depois complementando com outros alimentos de acordo com a idade e as condições da família.
Então, o que eu dizia naquela época e digo até hoje é manter o leite de peito até os 2 anos de idade ou mais!
Minha carreira começou ao entrar no curso de Medicina da USP (FMUSP). No quarto ano, tinha um curso de Pediatria com o professor Pedro de Alcântara, um dos melhores didatas que eu conheci. Ele tinha uma ótima didática e era muito sincero.
No 6º ano, eu tive Internato e depois Residência (só fiz o 1o ano) no Departamento de Pediatria do Hospital das Clínicas. A minha turma foi a primeira a ter um ano como inter- nato. Depois, com o auxílio de meus pais, abri meu consultório no bairro do Ipiranga, onde nasci, cresci e morei por muitos anos. Aten- dia a classe média, meus honorários eram acessíveis e podiam ser reduzidos ou par- celados. Nunca deixei de atender ninguém porque não podia pagar.
Aí me dirigi para trabalhar na CII. Como disse, era uma instituição de valor reconhecido e era bom para ganhar experiência e até para me tornar conhecido. Trabalhava sem remuneração, naturalmente, todas as manhãs. Meu chefe, o Dr. Gomes de Mattos, não deixava o paciente escolher o pediatra. Havia um corredor com 6 consultórios e as atendentes colocavam a ficha naquele que estava vago.
Após algum tempo, notei alguma coisa estranha: alguns pacientes repetiam muito a consulta comigo. Não tinha lógica matemática/estatística. Fiquei curioso e fui investigar. Descobri. Aquelas mulheres pobres davam gorjeta para as moças que pesavam e distribuíam as fichas, e essas moças também eram pobres, para elas as colocarem para mim.
Fiquei impressionado. Eu era melhor do que meus colegas? Eles também eram bons e tinham mais experiência do que eu, mas eu atendia com mais atenção e até com mais afeição, levava em conta os temores e as necessidades dos pais e de toda a família.
Mais tarde, foi aberto o SE da CII e passei a dar plantão noturno uma ou duas vezes por semana para ter uma remuneração a mais. A realidade que encontrei aí era diferente. No ambulatório havia pobreza, e no PS, miséria. Porque vinha gente de toda São Paulo, pois não havia ainda serviços de pronto-socorro pediátrico gratuito e de boa qualidade disponíveis.
A mortalidade infantil em São Paulo era muito alta. E de que morriam essas crianças? Eu escrevia no atestado de óbito: broncopneumonia. Porque esta era a causa final do óbito. Mas de- pois comecei a perceber que a causa das mortes era infecções repetidas e diarreia prolongada que se tornava persistente. Isso era determinado por pobreza, más condições higiênicas e, o pior, desmame precoce. As crianças desmamadas recebiam leite de vaca contaminado pelas condições de má higiene e pela falta de geladeira.
Diarreia aguda-diarreia prolongada-diarreia persistente-desnutrição progressiva-broncopneumonia. Óbito!
Eu já falo da Clínica do Ipiranga com emoção. E a minha emoção é muito maior quando eu falo do Dr. Augusto Gomes de Mattos. Só para contar uma história. A CII foi criada por uma família de elite do Ipiranga, a Vicente de Azevedo. Eles ficavam tristes com a miséria e a mortalidade infantil e com as crianças que não podiam ser socorridas. Então, eles tiveram ideia de criar um serviço de atendimento gratuito para essas crianças. Dona Ma- ria Carmelita Vicente de Azevedo, que foi a pessoa mais importante dessa família na criação dessa clínica, andava de bonde e encontrou, no bonde em Ipiranga, um médico, o Dr. Augusto Gomes de Mattos. Eles começaram a conversar e Dona Carmelita contou para ele que estavam abrindo um local para atendimento para criança pobre do Ipiranga e o convidou para ser o diretor dessa instituição. E ela nunca poderia imaginar como as coisas mudariam sob a direção do Dr. Gomes de Mattos.
Mas voltando à pergunta, o Dr. Gomes de Mattos foi meu mestre inspirador. Doutora Maria Aparecida Sampaio Zacchi foi minha mãe na Pediatria. O que ficou dessa experiência? Tudo. A parte SENTIMENTAL e a parte EMO- TIVA ficaram para sempre.
No meu cérebro ficou pensamentos, e no meu coração, amor. Minha formação ACADÊMICA foi estimulada e orientada por eles, Dr. Mattos e Dra. Zacchi. O resto foi, naturalmente, por minha conta.
Minha experiência na literatura pediátrica começou com a Revista Pediatria Prática, cria- da na CII. O Doutor Augusto Gomes de Mattos abria a revista para pediatras que quisessem fazer publicações científicas. Lembro-me bem que havia uma seleção rigorosa dos artigos e mesmo aqueles aceitos eram reescritos por nós para dar a necessária qualidade. Os au- tores quase não reconheciam seus originais, mas ficavam gratos.
Depois fui o 3o presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo. E também criamos a Revista da SPSP, que foi e continua sendo importante para a Pediatria Brasileira.
Eu também participei do início da Academia Brasileira de Pediatria. Naquela fase inicial não precisei me submeter a concurso, como é hoje, eu fui convidado.
É uma satisfação saber que atualmente a Academia ocupa um lugar de respeito e, mais do que isso, de incentivo no meio científico nacional, que, por sinal, cresceu muito nos últimos anos e ocupa lugar de destaque internacional.
No meu tempo de início em Pediatria, só contava com um livro importante de Pediatria – o Textbook of Pediatrics do Nelson – um dos maiores pediatras de todos os tempos. Era caro, em inglês, difícil de ler e mais ainda de colocar em prática. Sempre achei que tinha jeito de escrever, aliás, melhor do que falar. Conheci bons livros de Pediatria na biblioteca e estive a par de todos os melhores artigos in- ternacionais. Então, me ocorreu a ideia de escrever um livro diferente e que fosse útil para completar e atualizar os conhecimentos dos pediatras de todo o Brasil e ainda prepará-los para uma atuação prática eficiente. Pela minha experiência como pediatra de bairro, conseguia me colocar no lugar desses pediatras. Acho que é um pouco diferente dos grandes autores pediátricos como Nelson. Apresentei no meu livro conhecimentos pediátricos comprovados e atualizados e relatados de maneira prática. Fiz questão que não fosse uma receita de bolo, mas sim que ajudasse o pediatra a ter conhecimentos sólidos aplicáveis na prática clínica.
A ideia foi se desenvolvendo. Iniciava os capítulos com os conheci- mentos básicos que o pediatra precisava ter. Depois como aplicá- los. Aí, tive uma ideia – eu marcava essa orientação etapa por eta- pa e passo a passo de uma forma lógica.
As mensagens que recebi dos colegas me deram satisfação, mas também me estimularam a aperfeiçoar cada vez mais o estilo, o que ocorreu edição por edição. Está na sétima edição, indo para a oitava. À Editora Sarvier e seus responsáveis, desde a 1ª edição de 1978, meu reconhecimento.
Depois me veio outra ideia, de complementar o Diagnóstico e Tratamento, com o livro Emergências em Pediatria para orientar o plantonista do PS de Pediatria.
Eu posso e devo falar sobre Mario Margarido Filho. Eu tenho uma ligação muito grande com ele. Por inexperiência de minha mãe, intelectual, mas imigrante pobre que veio da Bessarábia, hoje Moldávia, para o bairro operário do Ipiranga na cidade de São Paulo, fui desmamado precocemente e recebi o leite dis- ponível na época – leite de vaca, que era contaminado. Isso me causou uma diarreia aguda de origem infecciosa, que se tornou prolongada persistente. Após várias consultas ineficazes com os médicos do bairro, meus pais foram aconselhados a consultar o melhor Pediatra de São Paulo – Mario Margarido Filho. Era longe, no centro da cidade, e caro, mas o que não se faz por um filho? Margarido Filho me receitou uma fórmula láctea especial que me curou depois de um tempo relativamente prolongado. Meus pais o tinham como um deus e falavam muito dele em casa. Curiosamente, isso me estimulou a ser médico e pediatra.
Já adiantado na FMUSP, fiz meu diagnóstico retrospectivo de diarreia fermentativa por in- tolerância à lactose. Aí perguntei para meus pais: “que leite mesmo que o Margarido Filho me receitou?’. Era um leite suíço caro, mas já disponível em São Paulo. Seu nome era EDEL. EDEL? Fui pesquisar o que era esse leite – um leite SEM LACTOSE. Isso ocorreu mais de 3/4 de século atrás. Incrível!
E a vida nos reserva acontecimentos surpreendentes. Por minha atuação pediátrica e minhas atuações, recebi um prêmio patrocinado pela Academia Paulista de Medicina em 1968, com mais de 10 anos de formado. Nome do prêmio? Margarido Filho
Eu tinha meu consultório, trabalhava em hospital, então não tinha carreira universitária. Mas eu fazia minhas pesquisas. Fiz meu doutora- mento na FMUSP, 1969, já faz 1/2 século. Para fazer doutoramento, precisava de uma tese, que foi sobre Diarreia aguda. Valor dos antimi- crobianos no seu tratamento. Eu tirei nota 10 com louvor da banca examinadora.
O título de Doutor me foi útil para ser con- vidado como professor na Faculdade de Medicina de Santos, que tinha sido criado naquela época, e fiquei lá por 40 anos. Quem me estimulou a fazer Livre-Docência foi, mais uma vez, o Doutor Luiz Rachid Trabulsi, que era originário da FMUSP, mas passou para a Escola Paulista de Medcina para ser professor titular de Microbiologia.
Eu me lembro que me afastei de minhas ativi- dades, inclusive no consultório, por 1 mês (foi a única vez que fiz isso). Usei esse mês para preparar as aulas – tinha uma lista delas, mas só uma seria exigida como apresentação no concurso. E seria sorteada no momento. Estava naturalmente nervoso. Será que me sairia bem? Iniciei a aula sorteada e, ao pronunciar as duas primeiras frases, fiquei satisfeito e lembro que disse para dentro de mim: “vai sair bem!”. Daí em diante, fiquei confiante, falei bem, excelente apresentação. Nota 10 da banca examinadora. Só 10? Não, foi 10 com louvor.
Se eu tivesse que escolher minha especialidade voltando aos tempos que iniciei minhas atividades profissionais, não há dúvida que escolheria novamente Pediatria. Nunca tive questionamento, muito menos arrependimento sobre minha escolha. Afinal, eu não tinha habilidade cirúrgica, gostava de crianças e tinha consciência de que elas eram o futuro de nossa comunidade e de nosso país.
Noto que nos últimos tempos Pediatria caiu um pouco na sua im- portância, mas curiosamente tem sido novamente realçada.
Então, o que eu faria se tivesse que começar hoje e o que recomen- do aos colegas que apreciam a prática da Pediatria é fazer Pedi- atria Geral complementada por uma subespecialidade pediátrica.
Hoje nós temos muitas especialidades pediátricas e subespeciali- dades, mas não pode abandonar a Pediatria Geral.
Papel da família em minha história. Meus pais eram imigrantes pobres
vindos da Bessarábia, que era uma província da Rússia e hoje é um país independente chamado de Moldávia.
Minha mãe era a intelectual da família, tendo se formado em Farmácia em Odessa, a cidade universitária da Rússia. Mas nunca exerceu porque emigrou para o Brasil, e naquela época não era possível revalidar o di- ploma.
Meu pai só tinha alfabetização. Durante muito tempo achava que ela era a forte da família, mas quando meu pai morreu relativamente jo- vem, percebi que ele na sua modéstia é que dava força ao casal.
Quando eu tinha 2 anos de idade, meu pai foi diagnosticado com tuberculose. Naquela época, o único tratamento disponível eram in- jeções diárias de estreptomicina por 2 anos. O complemento essencial do tratamento era ir para uma região de bom clima. Tuberculoso rico ia para Campos de Jordão, e tuberculoso pobre, para São José dos Campos. Era o caso do meu pai, que ficou lá morando numa pensão por 6 meses. E minha mãe teve que tomar o lugar dele trabalhando como ambulante, a pé, na região varzeana do bairro do Ipiranga – a Vila Carioca.
Com a recuperação do meu pai, que voltou a trabalhar, fui matriculado no Colégio Mackenzie. Até hoje não sei exatamente por quê. Era longe e caro. Devem ter dito a meus pais que era uma das melhores escolas de São Paulo. E para eles todo sacrifício era válido para a educação de seu primeiro filho. E lá fui para o Mackenzie. Pegava dois bondes e ainda andava a pé por um longo percurso entre eles. Mas o Mackenzie preparava para Engenharia e o sonho de meus pais é que o filho fosse DOKTOR. Eu era bom alu- no e consegui o que era raro na ocasião: terminei o 3º colegial e entrei direto na Faculdade de Me- dicina da USP. Em 13º lugar entre 700 candidatos e só 80 vagas.
Sempre quis fazer Pediatria e minha mãe me estimulou a isso. Fiz 1 ano (veja, 1 ano só) de Residência em Pediatria no Hospital das Clínicas da FMUSP. Não fiz o 2º ano porque notei que es- tava muito no começo e não estava ainda bem estruturado. Não valia a pena. E afinal eu pre- cisava começar a trabalhar. Meu pai me ajudou a abrir meu consultório no bairro do Ipiranga, onde eles eram bem conhecidos e eu já tinha fama de bom estudante e que, portanto, seria bom médico.
Mas teve outro ponto que foi decisivo. Foi meu casamento. Tive a sorte, costumo dizer que foi dedo de Deus, de encontrar a companheira ideal. Enny sempre me deu o apoio que eu precisava para desenvolver minha carreira, em condições difíceis e, mais do que isso, foi a base na consti- tuição de uma família estruturada e afetiva que hoje consta de 4 filhos, 10 netos e um bisneto recém-nascido.
Minha conexão com a Pediatria Brasileira começou com minha atividade pediátrica do consultório no bairro do Ipiranga. Lá, todos os médicos eram clínicos gerais que também aten- diam crianças, mas geralmente nem gostavam de atendê-las porque achavam difícil entende-las. Então, eles passaram a encaminhar as crianças para o meu consultório.
Assim, eles mesmos me passaram a encaminhar as crianças que apresentavam problemas. Tra- balhei na CII, fiz pesquisas clínicas premiadas, elaborei minha tese de doutorado. Fui pioneiro com meu livro Pediatria: Diagnóstico + Tratamen- to, depois complementado com Emergências em Pediatria e com Cartilha de Amamentação.
Também fui convidado para ser o primeiro pro- fessor de Pediatria da recém-criada Faculdade de Ciências Médicas de Santos. Aceitei o convite desde que fosse por tempo curto. Curto, hein? Fiquei quase 40 anos. E nessa época fiz minha Livre-Docência na EPM (com o incentivo do pro- fessor Luiz Rachid Trabulsi).
ASSISTA A ENTREVISTA - CLIQUE AQUI