Memória

Três décadas de transplante hepático no Brasil

Dra. Gilda Porta
Presidente do Departamento Científico de Hepatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
Hospital Infantil Municipal Menino Jesus
Hospital Sírio Libanês São Paulo


O transplante de fígado representa um dos maiores avanços terapêuticos cirúrgicos da atualidade. Antes do seu advento, o tratamento de doenças hepáticas crônicas e graves incluía apenas medidas paliativas. O tratamento medicamentoso é disponível apenas para poucas doenças que comprometem o fígado. Até o final da década de 80, a expectativa de vida de crianças com doença hepática crônica era de 20% a 30%. A introdução da droga imunossupressora Ciclosporina mudou radicalmente a sobrevida dos pacientes pós-transplante de fígado, de tal modo que, em 1983, o National Institute of Health dos Estados Unidos da América modificou a classificação deste procedi- mento como cirurgia experimental para terapia eficaz.

Atualmente, o transplante hepático está indicado em doenças hepáticas agudas graves e crônicas, nos erros inatos do metabolismo em que não há tratamento medicamentoso e nos tumores hepáticos. As indicações deste procedimento estão aumentando e um número crescente de crianças menores de 1 ano está sendo transplanta- do com sucesso. Houve aumento significativo na taxa de sobrevida ao longo da década de 90 com sobrevida em 1 ano, superior a 90% em pacientes eletivos (p. ex.: na cirrose hepática descompensada) e maior que 70% na insuficiência hepática aguda. A sobrevida em 20 anos situa-se acima de 80%.

Vários fatores têm contribuído para maior sobrevida das crianças: melhora dos cuidados nos períodos pré, intra e pós-operatório, melhor suporte nutricional, uso de novos imunossupressores e aprimoramento de técnicas cirúrgicas. Destaca-se ainda o aumento na utilização de doador vivo, que permitiu aumento significativo do número de transplantes realizados em crianças.

O primeiro transplante hepático pediátrico realiza- do no Brasil foi em 1989, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP liderado pelo prof. Joao Gilberto Maksoud, sendo computa- dos mais de 1300 transplantes nesta instituição. Em 2000, iniciamos o programa de transplante hepático pediátrico no Hospital Sírio Libanês em São Paulo, sob a responsabilidade do Dr. Paulo Chapchap. Até o momento, foram realizados 1.394 transplantes pediátricos, com sobrevida em 1 ano de 93% e em 5 anos de 85%, sendo que mais de 80% dos transplantes foram a partir de doador vivo.

No Brasil, entre 2016 e 2021, foram realizados 1065 transplantes hepáticos pediátricos, sendo 806 (75,6%) com doadores vivos. Dentre os Centros que realizam transplante hepático intervivos, destacam-se o Instituto da Cri- ança (HC-FMUSP), o Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, o Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (UFRGS) e o Hospital da Criança Santo Antônio, também em Porto Alegre.


A atresia biliar é a causa mais frequente entre as indicações de trans- plante hepático. Neste grupo de crianças, caso o diagnóstico não seja realizado precocemente, raramente ultrapassam os dois anos de vida. Por outro lado, ao realizar o transplante precocemente, garante-se uma sobrevida superior a 90%. Outro grande impacto são os pacientes com insuficiência hepática aguda e quando a cirurgia é realizada muito precocemente (sendo a maioria com doador vivo), as sequelas serão baixas.

A melhora da qualidade de vida pode ser verificada no desempenho acadêmico, na capacidade profissional, assim como constituir família com gestações normais tem sido frequentemente relatada. A maio- ria das crianças transplantadas tem desenvolvimento psicossocial normal, algumas podem apresentar deficiências cognitivas, principalmente aquelas muito graves antes do transplante hepático. Complicações renais, cardiovasculares e desenvolvimento de tumores podem ocorrer na evolução.


“Outro grande impacto são os pacientes com insuficiência hepática aguda e quando a cirurgia é realizada muito precocemente (sendo a maioria com doador vivo), as sequelas serão baixas.”


O sucesso do transplante exige um trabalho conjunto permanente entre o paciente e seus familiares com uma equipe multiprofissional que inclui médicos, enfermeiras, assistente social, anestesistas, radiologistas, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e várias especialidades pediátricas.

Nestas mais de três décadas de transplante hepático pediátrico no Brasil, observa-se um enorme impacto na sobrevida de crianças e adolescentes, assim como na qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares. O es- forço conjunto entre serviços médicos públicos e privados capacitados e com o apoio do governo federal mostrou-se eficaz na consolidação dos programas de transplantes, preservando quase 3000 vidas de crianças portadoras de doença hepática.