O transplante de fígado representa um dos maiores avanços terapêuticos cirúrgicos da atualidade. Antes do seu advento, o tratamento de doenças hepáticas crônicas e graves incluía apenas medidas paliativas. O tratamento medicamentoso é disponível apenas para poucas doenças que comprometem o fígado. Até o final da década de 80, a expectativa de vida de crianças com doença hepática crônica era de 20% a 30%. A introdução da droga imunossupressora Ciclosporina mudou radicalmente a sobrevida dos pacientes pós-transplante de fígado, de tal modo que, em 1983, o National Institute of Health dos Estados Unidos da América modificou a classificação deste procedi- mento como cirurgia experimental para terapia eficaz.
Atualmente, o transplante hepático está indicado em doenças hepáticas agudas graves e crônicas, nos erros inatos do metabolismo em que não há tratamento medicamentoso e nos tumores hepáticos. As indicações deste procedimento estão aumentando e um número crescente de crianças menores de 1 ano está sendo transplanta- do com sucesso. Houve aumento significativo na taxa de sobrevida ao longo da década de 90 com sobrevida em 1 ano, superior a 90% em pacientes eletivos (p. ex.: na cirrose hepática descompensada) e maior que 70% na insuficiência hepática aguda. A sobrevida em 20 anos situa-se acima de 80%.
Vários fatores têm contribuído para maior sobrevida das crianças: melhora dos cuidados nos períodos pré, intra e pós-operatório, melhor suporte nutricional, uso de novos imunossupressores e aprimoramento de técnicas cirúrgicas. Destaca-se ainda o aumento na utilização de doador vivo, que permitiu aumento significativo do número de transplantes realizados em crianças.
O primeiro transplante hepático pediátrico realiza- do no Brasil foi em 1989, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP liderado pelo prof. Joao Gilberto Maksoud, sendo computa- dos mais de 1300 transplantes nesta instituição. Em 2000, iniciamos o programa de transplante hepático pediátrico no Hospital Sírio Libanês em São Paulo, sob a responsabilidade do Dr. Paulo Chapchap. Até o momento, foram realizados 1.394 transplantes pediátricos, com sobrevida em 1 ano de 93% e em 5 anos de 85%, sendo que mais de 80% dos transplantes foram a partir de doador vivo.
No Brasil, entre 2016 e 2021, foram realizados 1065 transplantes hepáticos pediátricos, sendo 806 (75,6%) com doadores vivos. Dentre os Centros que realizam transplante hepático intervivos, destacam-se o Instituto da Cri- ança (HC-FMUSP), o Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, o Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (UFRGS) e o Hospital da Criança Santo Antônio, também em Porto Alegre.
A atresia biliar é a causa mais frequente entre as indicações de trans- plante hepático. Neste grupo de crianças, caso o diagnóstico não seja realizado precocemente, raramente ultrapassam os dois anos de vida. Por outro lado, ao realizar o transplante precocemente, garante-se uma sobrevida superior a 90%. Outro grande impacto são os pacientes com insuficiência hepática aguda e quando a cirurgia é realizada muito precocemente (sendo a maioria com doador vivo), as sequelas serão baixas.
A melhora da qualidade de vida pode ser verificada no desempenho acadêmico, na capacidade profissional, assim como constituir família com gestações normais tem sido frequentemente relatada. A maio- ria das crianças transplantadas tem desenvolvimento psicossocial normal, algumas podem apresentar deficiências cognitivas, principalmente aquelas muito graves antes do transplante hepático. Complicações renais, cardiovasculares e desenvolvimento de tumores podem ocorrer na evolução.
“Outro grande impacto são os pacientes com insuficiência hepática aguda e quando a cirurgia é realizada muito precocemente (sendo a maioria com doador vivo), as sequelas serão baixas.”
O sucesso do transplante exige um trabalho conjunto permanente entre o paciente e seus familiares com uma equipe multiprofissional que inclui médicos, enfermeiras, assistente social, anestesistas, radiologistas, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e várias especialidades pediátricas.
Nestas mais de três décadas de transplante hepático pediátrico no Brasil, observa-se um enorme impacto na sobrevida de crianças e adolescentes, assim como na qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares. O es- forço conjunto entre serviços médicos públicos e privados capacitados e com o apoio do governo federal mostrou-se eficaz na consolidação dos programas de transplantes, preservando quase 3000 vidas de crianças portadoras de doença hepática.