Ética e Bioética

Autonomia do paciente e do médico: breves considerações

A autonomia do paciente e do médico são essenciais para o bom desempenho da Medicina, do ponto de vista da ciência, da bioética e da ética médica. São visitadas em vários capítulos, artigos, parágrafos e incisos, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da Constituição da República do Brasil (CR) e do atual Código de Ética Médica (CEM).

Neste, já nos princípios fundamentais, o inciso VII orienta que “o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje”, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Pode-se perceber claramente limites à autonomia do médico, assim como na do paciente no inciso XXI, que descreve: “no processo de tomada de decisões profissionais, o médico aceitará, de acordo com seus ditames de conciência e as previsões legais, as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos”, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. No capítulo dos direitos dos médicos (diceológicos), certifica que “é direito do médico indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente”. A autonomia do médico está, assim como a autonomia do paciente, delimitada pela ciência e por outros critérios.

Pode-se observar variadas salvaguardas e demarcações da autonomia em outros incisos dos dois capítulos citados, mas também nos onze capítulos dos deveres dos médicos (deontológicos) e seus 117 artigos, dos quais separo três exemplos: “o médico tem o dever de garantir ao paciente o direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar e não exercer sua autoridade para limitá-lo”; não pode, igualmente, “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas”, salvo em caso iminente de risco de morte; “é vedado ao médico abandonar paciente sob seus cuidados”. Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, tem direito o médico a renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal e que garanta sua substituição por outro médico que dará continuidade aos cuidados, colocando à disposição deste todas as informações necessárias. As pertinentes objeções: “excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

Portanto, autonomia não pode ser considerada passaporte para ultrapassar qualquer fronteira ou uma habilitação em branco para se decidir como queira em qualquer situação. A observância da ciência e a prioridade do cuidado à saúde e à vida do paciente, estarão sempre presentes nos princípios fundamentais da medicina, entre direitos e deveres do médico, perfilando a autonomia.

Durante a pandemia da Covid, a questão de ter sido incentivado, até mesmo pelo governo, o uso de terapêuticas não reconhecidas pela ciência para este mal específico e tendo sido usada, inadequada e perigosamente, a autonomia do médico como salvaguarda confundiu a sociedade, pacientes e até mesmo médicos que sofriam o drama de ainda não existir vacinas ou medicamentos disponíveis para prevenção e cura desse mal. No caso desses remédios propalados, inexistem até hoje, mesmo em protocolos de pesquisa, como drogas experimentais para essa doença, o que neste caso exigiria a aceitação pelos órgãos competentes como a comissão de ética em pesquisa local (CEP) ou a comissão nacional de ética em pesquisa em humanos (CONEP), além de ser obrigatório o consentimento do paciente ou de seu representante legal.

Os princípios bioéticos autonomia, beneficência, não maleficência e justiça se fazem presentes e apontam os objetivos e caminhos a serem trilhados não só por médicos, mas também por pacientes, pais e responsáveis, profissionais da saúde, legisladores e juízes.

A autonomia do paciente tem que ser observada desde a gestação e em todas as faixas etárias, seus limites respeitados, inclusive nas situações clínicas irreversíveis e terminais, quando é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal, lembrando que a eutanásia e o suicídio assistido são proibidos no nosso país. Deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, evitando que o doente sinta dor, sede, fome ou qualquer outro desconforto, preservando seu pudor, privacidade, dignidade, identidade, que é a afirmação e prática da ortotanásia, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, ou seja, vedando a prática da distanásia, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

O doente em fase terminal tem o direito de saber, de decidir, de não ser abandonado, de ter tratamento paliativo, de não ser tratado como mero objeto, de acordo com as conveniências da família ou da equipe de saúde, ou mesmo do gestor ou do plano de saúde. Todos os cuidados devem ser dirigidos no exclusivo interesse do paciente.

A autonomia de crianças e adolescentes é objeto de preocupação e destaque no ECA, na CR e no CEM. Os pais são titulares de poderes legitimamente atribuídos, na verdade um conjunto de deveres, que devem ser exercidos exclusivamente no interesse dos filhos. Com a CR e o ECA, a autoridade parental passou a ter como finalidade precípua a promoção da personalidade e a dignidade dos filhos, considerando a situação peculiar de pessoas em desenvolvimento (artigos 227 da CR, sexto e 15º do ECA).

O ECA reconhece a autonomia da criança e do adolescente, apesar de serem pessoas em desenvolvimento. Artigo sexto: “na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. Ou seja, uma autonomia progressiva, proporcionalmente ao ganho de desenvolvimento, frutos de cuidados paternos que lhes garanta princípios como liberdade, direitos individuais, bem comum, permitindo que na medida em que o desenvolvimento e as habilidades são gradualmente conquistados pelos menores, lhes são assegurados o preparo para que possam entender e usar a autonomia ofertada.

O Capítulo II do ECA, “Do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade”, dispõe no artigo 15: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. O artigo 16, define que o direito à liberdade compreende sete aspectos, entre eles, “opinião e expressão”, robustecendo a autonomia desse grupo. O artigo 17 define o direito ao respeito: “consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Além disso, cabe uma interpretação, talvez óbvia, ao parágrafo único, do artigo 142, do ECA, que diz: “a autoridade judiciária dará curador especial à criança ou adolescente, sempre que os interesses destes colidirem com os de seus pais ou responsável, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que eventual”. Ele impõe que o poder familiar deve ser exercido em respeito à intrínseca autonomia individual dos menores, que na qualidade de pessoas humanas em desenvolvimento gozam de absoluta prioridade na promoção de seus direitos fundamentais conforme determina o artigo 227 da Constituição da República, ou seja, à luz do princípio constitucional do melhor interesse da criança e do adolescente.