Já é bastante conhecido, através de evidências cientificas, o impacto, a curto e longo prazo, de experiências adversas em fases iniciais do desenvolvimento na saúde mental de crianças e adolescentes. Experiências relacionadas a situações familiares levando a situações de abuso, negligência, maus tratos, tanto físicos como ambientais (pobreza, catástrofes naturais, conflitos) preocupam os clínicos, cientistas, pais e formuladores de políticas públicas. De uma maneira geral, acredita-se que os riscos podem ser cumulativos e quanto maior a exposição maior o risco de comprometimento no desenvolvimento, seja cognitivo, linguístico, social, emocional ou até mesmo a saúde física. (Ellis et al. 2022, Smith & Pollak, 2021).
Estudos sugerem que o mecanismo responsável por este impacto tem relação com questões referentes à plasticidade cerebral, que é definida como a capacidade do cérebro em desenvolvimento de se adaptar através de modificações dos circuitos neurais frente a novas experiencias ambientais/estímulos externos. Esta característica traz muitas vantagens (por exemplo: extrema capacidade de reabilitação frente a lesões e agravos) mas também traz desvantagens, pois é ambiente dependente. Vivências e desenvolvimento em ambientes desfavoráveis e adversos afetam a plasticidade cerebral (Kolb B & Gibb R. 2014).
Adicionalmente, evidências indicam que as alterações cognitivas, afetivas e do desenvolvimento neural que ocorrem após experiências adversas atuam como fator desencadeante para elevação do risco de psicopatologia, baixo rendimento escolar e problemas físicos de saúde. Estudos de revisão sistemática e metanalise utilizando técnicas de neuroimagem trazem evidências sobre o impacto da exposição precoce a adversidades nas estruturas cerebrais. Pela ressonância magnética, observa-se um efeito ontogenetico não uniforme no volume cerebral e diferentes estruturas do sistema nervoso central, além de alterações especificas relacionadas a idade e tipo de experiência adversa. (Vannucci et al. 2023; Kribakaran et al. 2020).
Do ponto de vista antropológico, sabe-se que experiências relacionadas à privação social, falta de apoio parental, morbimortalidade materna, adversidades socioeconômicas, estresse, violência comunitária e desatres ambientais têm um impacto negativo no desenvolvimento. O impacto dos desastres naturais no período pré-natal ou perinatal pode levar a efeitos adversos na gestação tais como prematuridade, redução no peso de nascimento e perímetro cefálico. A exposição ao estresse e excesso de glicocorticoides durante o período de desenvolvimento fetal determina risco aumentado de doenças cardiometabólicas e alterações cognitivas, através de mecanismos epigenéticos (alterações da metilação), que podem afetar todo o curso da vida (Martínez-González et al.).
Nos últimos cinco anos, o mundo tem passado por uma série de circunstâncias problemáticas que afetam a população de forma global em diversos aspectos de risco para situações adversas: 1) as importantes mudanças climáticas que temos vivenciado associadas a aumento de catástrofes da natureza (incêndios, inundações, terremotos, temperaturas extremas); 2) a pandemia de COVID-19, que, em suas duas ondas, com mortalidade de 14,9 milhões de indivíduos, estimada pela ONU, afetou toda a população mundial gerando um impacto socioeconômico incalculável e deixando como consequência um aumento significativo da inequidade em diferentes regiões geográficas, seguido de aumento de prevalência de doenças mentais e problemas de sono; 3) o conflito armado causado pela invasão da Rússia ao território da Ucrânia, que surpreendeu a todos em fevereiro de 2022, gerando uma onda de deslocamento populacional de refugiados, com famílias dispersas em fuga do território ucraniano, impactadas pelas mortes e destruição de suas cidades. Segundo dados da ACNUR, em fevereiro de 2023, após um ano do início dos conflitos, cerca de 13 milhões de ucranianos ainda se encontram deslocados de suas casas. Preocupações com segurança e disponibilidade de serviços básicos (eletricidade, água, saúde, condições de habitação) são fatores impeditivos deste retorno à normalidade assim como a continuação do conflito, sem solução até os dias atuais; 4) mais recentemente, em 7 de outubro de 2023, o mundo é novamente surpreendido pelo ataque do Hamas a Israel. Novamente, jovens que estavam pacificamente assistindo a um concerto musical são atingidos e vivenciam situações de brutalidade extrema, sendo sequestrados ou assassinados, seguido da invasão de suas comunidades onde os habitantes foram dizimados dentro de suas casas. Com a contagem dos mortos e feridos aumentando diariamente em ambos os lados, com a angustiante falta de notícias dos reféns israelenses (idosos, jovens, crianças e mulheres civis) ainda presos em circunstâncias e locais desconhecidos, com o deslocamento forçado da população civil palestina em condições precárias, com o uso pelo Hamas de civis e crianças como escudo humano, prática que nos retorna a épocas de barbárie e que não pode ser aceito pelas organizações internacionais e por uma sociedade moderna e civilizada, certamente o impacto adverso que está atingindo toda uma geração de jovens e adolescentes será imensurável.
No contexto atual, o impacto das circunstâncias catastróficas mundiais é rapidamente extrapolado para toda a população que tem acesso irrestrito às mídias (Internet, TV, rádio e jornais) e, desta forma, mesmo quem não está vivenciando diretamente os conflitos, os desastres naturais e as circunstâncias adversas pode visualizar os fatos e consequentemente também ser atingido, aumentado a sensação de medo, insegurança, ansiedade. Estudos mostram que conflitos armados apresentam um efeito pervasivo em crianças quer elas estejam direta ou indiretamente envolvidas, variando de lesões físicas a doenças infecciosas, desnutrição e intenso estresse psicológico (Kadir et al., Kampalath et al.) e o quão importante é o papel de profissionais da área de saúde mental para mitigar estes efeitos (Weishut & Soffer-Elnekave).
Como explicar às nossas crianças e adolescentes, que tão duramente sentiram os efeitos da recém-controlada pandemia de COVID-19, os atos de brutalidade e maldade extrema disponibilizados continuamente em nossas telas? Como diminuir o impacto das privações de crianças e adolescentes que estão diretamente e inadvertidamente envolvidos em meio aos conflitos armados?
Certamente, a necessidade de mobilizar esforços de atenção à saúde mental da população em risco deve ser priorizada, nas circunstâncias atuais faltam profissionais em número suficiente para todas as demandas.
A nós, pediatras do Brasil, e principalmente àqueles que estão diretamente envolvidos no atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco cabe um posicionamento ativo. Estratégias de apoio e atendimento as crianças e adolescentes que estão vivenciando as diversas tragédias destes últimos cinco anos têm que ser postas em prática imediatamente, de forma global, e as estruturas de saúde têm que estar organizadas para o recebimento das consequências que se avizinham, um aumento significativo na incidência de doenças mentais.
Referências
Ellis BJ, Sheridan MA, Jay Belsky J, McLaughlin KA. Why and how does early adversity influence development? Toward an integrated model of dimensions of environmental experience. Development and Psychopathology 2022; 34: 447–471.
Kadir A, Shenoda S, Goldhagen J. Effects of armed conflict on child health and development: a systematic review. PLoS One 2019; 14: e0210071.
Kampalath V, Tarakji A, Hamze M, Loutfi R, Cohn K, Abbara A. The impacts of the Syrian conflict on child and adolescent health: a scoping review. J Public Health 2023; 45: 621–30.
Kolb B & Gibb R. Searching for principles of brain plasticity and behavior. Cortex; a Journal Devoted to the Study of the Nervous System and Behavior 2014; 58(2), 251–260.
Kribakaran S, Danese A, Bromis K, Kempton MJ, Gee DG. Meta-analysis of Structural Magnetic Resonance Imaging Studies in Pediatric Posttraumatic Stress Disorder and Comparison With Related Conditions. Biological Psychiatry: Cognitive Neuroscience and Neuroimaging 2020; 5:23–34.
Martínez- González KG, Morou- Bermúdez E, Buxó CJ. Perinatal Mental Health Outcomes Following Natural Disasters- Viewpoint. JAMA Psychiatry 2023, Nov 1 : E1-E2.
Nações Unidas – ONU News – https://www.news.un.org. Pesquisado em 10/11/2023.
Smith KE & Pollak SD. Rethinking concepts and categories for understanding the neurodevelopmental effects of childhood adversity. Perspectives on Psychological Science 2021; 16(1), 67–93.
UNHCR – ACNUR – Agencia da ONU para Refugiados. https://www.acnur.org. Pesquisado em 10/11/2023.
Vannucci A, Fields A, Hansen E, Katz A, Kerwin J, Tachida A. Interpersonal early adversity demonstrates dissimilarity from early socioeconomic disadvantage in the course of human brain development: A meta-analysis. Neuroscience and Biobehavioral Reviews 2023; 150: 105210.
Weishut DJN, Soffer-Elnekave R. Israelis in support of mental health. The Lancet 2023, 402: 1622.