Palavra da Presidente da ABP

A insuficiência de leitos hospitalares terciários pediátricos no Brasil

Dra. Sandra Grisi
Presidente da Academia Brasileira de Pediatria
Membro titular da cadeira n. 6 da ABP

O Brasil enfrenta um desafio alarmante quando se trata de disponibilidade de leitos hospitalares terciários pediátricos. Essa questão crítica deixa crianças desassistidas e exige uma reflexão profunda sobre as razões e as possíveis soluções para essa insuficiência.

A organização do sistema de saúde no Brasil é um tema complexo. De um lado, o setor público sofre com a carência de recursos, com as dificuldades de gestão, agravados pela desigualdade regional; de outro lado, o setor privado enfrenta pressões de custos decorrentes do avanço tecnológico sempre proporcionalmente superiores aos incrementos de receita.

Segundo os últimos dados que constam da Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde, 71% dos brasileiros têm os serviços públicos de saúde como referência para seu atendimento, sendo as Unidades Básicas de Saúde a principal porta de entrada no sistema, seguidos pelos serviços de emergência. A partir deste ponto, o sistema de saúde deve contar com unidades de média e alta complexidades ambulatoriais e hospitalares para dar respostas às atuais necessidades de saúde. No entanto, o que encontramos na realidade é a escassez de oferta de recursos desta natureza. Isto decorre do insuficiente aporte de recursos financeiros, da dificuldade de gestão do sistema público de saúde, além da dissonância entre a capacidade de atenção dos serviços e a atual epidemiologia da saúde da criança no Brasil.

 A gestão do sistema público decorre das diferentes esferas de governo, cada uma com suas competências específicas e com dificuldades próprias para atuarem como uma rede integrada de atendimento, além da dissonância entre a oferta de recursos e serviços em relação ao atual panorama epidemiológico, com aumento da prevalência de condições crônicas e complexas.

De modo conciso, podemos definir que o município tem a responsabilidade pela atenção básica, o que inclui a promoção, prevenção e tratamento de doenças na comunidade local, além da vigilância epidemiológica e sanitária no âmbito municipal. Aos estados, competem a gestão de serviços de média complexidade, como hospitais regionais e ambulatórios especializados, além da coordenação e planejamento regional do sistema de saúde. A União é responsável por coordenar o sistema como um todo, definindo normas e políticas nacionais de saúde, pelo financiamento por meio de repasses aos estados e municípios e pela gestão de serviços de alta complexidade. Algumas competências são compartilhadas entre as três esferas. O objetivo do SUS é garantir o acesso universal e igualitário à saúde, buscando a integralidade do cuidado, ou seja, contemplando ações de promoção, prevenção, assistência em todos os níveis e reabilitação.

A gestão sistêmica, integrando os diferentes níveis de governo, é fundamental para o funcionamento eficiente desse sistema, como também a relação entre as demandas da atenção primária e secundária com os recursos especializados e de alta complexidade. Entretanto, o que assistimos é a discrepância entre estes níveis de atenção.

A oferta dos serviços nos diferentes níveis deve seguir o mapa epidemiológico da região, sendo necessária uma readequação da oferta de serviços dos diferentes níveis de atenção à transição epidemiológica da saúde da criança no Brasil.

No século 20, as principais ameaças à saúde da criança eram as doenças infecciosas, a desnutrição e as condições perinatais. Com a melhoria nas condições de vida e os avanços na saúde pública houve uma mudança significativa na morbimortalidade infantil e assistimos no século 21 o aumento na prevalência de doenças crônicas e complexas. O sistema de atenção à saúde da criança precisa ser revisto e adequado para as demandas atuais.

É fundamental enfrentarmos os fatores que contribuem para essa escassez de leitos hospitalares pediátricos de alta complexidade. Uma das principais razões é a falta de investimento no setor de saúde pública, resultando em uma infraestrutura insuficiente para atender a demanda. A distribuição geográfica desigual desses leitos e o custo elevado para a construção e manutenção de leitos hospitalares terciários pediátricos são partes importantes do problema. Equipamentos especializados, equipes médicas capacitadas e infraestrutura adequada encarecem o processo de criação desses leitos. Além disso, a falta de profissionais especializados dificulta ainda mais a oferta desses serviços com a excelência requerida. As crianças com doenças graves ou complexas exigem cuidados específicos e a ausência de leitos adequados pode comprometer seriamente seu prognóstico e qualidade de vida. Além disso, essa falta de infraestrutura afeta também o ensino e a pesquisa na área da pediatria, uma vez que dificulta o desenvolvimento de estudos avançados e a prática de técnicas inovadoras.

Para solucionar essa situação crítica, é necessária uma abordagem sistêmica e integrativa da saúde da criança, acompanhada dos investimentos governamentais para a construção e manutenção de leitos hospitalares terciários para que a rede de atendimento seja eficiente e eficaz. Além disso, é fundamental promover a formação de profissionais especializados nessa área, oferecendo incentivos para que estudantes de medicina escolham a pediatria como especialidade.

A insuficiência de leitos hospitalares terciários pediátricos no Brasil é um problema urgente que afeta diretamente a saúde e o bem-estar das crianças do país.

É fundamental que a sociedade se mobilize em busca de soluções eficazes, garantindo um futuro mais promissor para as gerações futuras.