ENTREVISTA COM ACADÊMICA

Licia Moreira e neonatologia: um amor à primeira vista
Titular da cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Pediatria (ABP) e presidente do Departamento Científico de Neonatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Lícia Maria Oliveira Moreira sempre esteve decidida em suas escolhas. Desde cedo, sabia que gostaria de cursar medicina e ter uma carreira acadêmica. Nos primeiros anos de graduação, já tinha se apaixonado pela neonatologia e encontrado seu caminho.

Em entrevista ao Boletim da ABP, a pediatra e neonatologista fala mais sobre os desafios da especialidade no país, o trabalho do Departamento e o papel da ABP.

- Por que a senhora decidiu estudar Medicina? E como foi sua escolha pela Pediatria?

No primeiro ano colegial, percebi que realmente comecei a ter interesse pela Medicina. Sou a mais velha de uma família de três filhos. Então, sempre tive essa coisa do cuidar e esse interesse pelo ensino. Eu sabia que ia ensinar, isso desde menina.

Em relação à pediatria, a medicina sempre me encantou. Tínhamos dois amigos de meu pai que frequentavam muito nossa casa e eram médicos. Acredito que, de alguma forma, influenciaram. Eram pessoas que frequentavam diariamente nossa casa e eram os três médicos de uma cidade pequena do interior.

Quando comecei a medicina, eu gostava muito de todas as matérias e ia ficando. Fazia clínica médica, ficava na clínica médica; passava em cardiologia, ficava na cardiologia, fazia endocrinologia, enfim, eu realmente me dediquei muito desde o início. Além de ter o maior prazer de ficar dentro dos ambulatórios e frequentando as enfermarias do Hospital das Clínicas, aqui em Salvador.

Quando chegou no quinto ano, cursei a disciplina de pediatria, preventiva e puericultura, eu me encantei. E me encantei mais ainda quando eu fui para a maternidade, tive a experiência com a neonatologia, tanto que meu primeiro livro de pediatria foi um livro voltado a esta área de atuação, o “Enfermidades do recém-nascido”, livro em espanhol muito famoso na época do Schaffer.

Então, meu primeiro encantamento mesmo foi com a neonatologia. Tanto que eu disse para o professor Nelson Barros, que era o titular na época, "vou ser neonatologista". E ele virou para mim e disse: "A senhora vai ser primeiro pediatra". Claro que vou ser pediatra.

Eu digo que a neonatologia foi amor à primeira vista. Cuidar dos recém-nascidos realmente foi um encantamento. Então, foi no quinto ano de medicina que eu comecei a me dedicar mais à pediatria. No último ano da residência de pediatria, fiz um estágio no Instituto de Perinatologia da Bahia (IPERBA). E, a partir daí, continuei frequentando os plantões. Fui plantonista na neonatologia durante todo o sexto ano de medicina, no IPERBA, e na maternidade pública Tsylla Balbino.

Terminada a residência, fiz o mestrado em infecções fúngicas. Minha tese foi sobre sífilis na gestante e no recém-nascido. A partir daí, já desenhei a minha pós, mesmo já me dedicando à neonatologia.

- A senhora falou que a neonatologia foi amor à primeira vista. Mas teve mais alguma outra influência que a levou a entrar nessa área?

Não, foi observar mesmo. Observar os recém-nascidos dentro da sala de parto. O cuidado com os recém-nascidos. Eu me identifiquei muito em estudar os pequenininhos. Eu comecei a ter esse interesse pelos recém-nascidos, tão frágeis em tudo. Então, o interesse foi por isso mesmo.

Uma coisa importante é que eu via que a neonatologia estava começando no mundo inteiro com a melhor tecnologia dos anos 70. Então, aquilo ali realmente era um leque muito grande que a gente, que atua na neonatologia, não era só o cuidado em sala de parto. Era uma medicina interna numa determinada faixa etária, nos primeiros 28 dias de vida. Vendo que era uma área que estava em crescimento, que estavam cheios de estudos novos, eu já gostava muito de estudar, pretendia fazer o mestrado. Então, desde o terceiro, quarto ano medicina já estava de olho em fazer uma pós-graduação, em fazer um mestrado e seguir a carreira acadêmica, desde o quarto ano de medicina eu já pensava nisso. E, quando eu via a neonatologia, uma área da pediatria que eu já tinha gostado, e me vi com essa possibilidade ampla, esse grande leque, eu não tive a menor dúvida de que iria fazer.

- A senhora também é presidente do Departamento Científico de Neonatologia da SBP. Como tem sido o trabalho no Departamento e quais são suas perspectivas para o futuro da Neonatologia no país?

O Departamento tem trabalhado muito, como sempre ocorreu. Temos uma atividade grande, não só em congressos, em aulas, mas em publicações. Nós publicamos muitos documentos e artigos que vão nortear o pediatra e o neonatologista, os protocolos. Ou seja, é um departamento que trabalha bastante e produz muitos materiais científicos e não fica restrito só aos congressos, que já é uma atividade bastante intensa. Fazemos a produção científica, trabalhamos nisso e temos a seção no Jornal de Pediatra, no Programa de Atualização em Neonatologia (PRORN), nos cursos. Então, é uma produção muito grande que o Departamento tem.

O Departamento é composto por doze membros, doze neonatologistas de diferentes estados. Então, a gente conseguiu compor um Departamento que abrange bem as regiões de todo esse nosso país continental.

Nós, da neonatologia, crescemos muito. A neonatologia cresceu muito no mundo inteiro, mas os desafios ainda são muito grandes. E um dos desafios que nós estamos vendo agora é, nesses últimos anos, a diminuição de pessoas que vão fazer neonatologia. Por que isso? Porque o médico tem seis anos de curso da graduação, mais três anos de residência de pediatria e dois anos de neonatologia. Em outras épocas, nós tínhamos dois anos de pediatria e um ano de neonatologia. Então, com três anos, estava formado em neonatologia, capacitado para atuar no mercado.

No entanto, aumentamos para dois anos a neonatologia, ficamos em quatro anos. Ainda temos uma demanda grande. Mas, atualmente, com os três anos de pediatria e mais dois de neonatologia, são 11 anos de formação. E observamos a diminuição da demanda para a neonatologia. Todos nós precisamos realmente estimular esses jovens a continuarem se encantando. Eles gostam muito de neonatologia, mas quando eles veem o tempo, eles preferem fazer os três anos de pediatria e pronto. E nós precisamos desses profissionais habilitados para cuidar do recém-nascido, para cuidar das especificidades do recém-nascido.

Então, isso tem sido o desafio da nossa gestão, dos neonatologistas de um modo geral; estamos vendo que soluções poderemos propor, de modo que voltemos a ter maior número de colegas pediatras que façam neonatologia. Não só neonatologia, todas as outras especialidades que exigem mais dois anos também têm enfrentado essas dificuldades, como a própria terapia intensiva pediátrica.

Outros desafios igualmente são a tecnologia, o acesso a uma medicina que atenda à necessidade das crianças. A gestante ter acesso à maternidade de maior complexidade para os recém-nascidos nascerem em melhores condições. Isso tem até melhorado um pouco com a abertura de unidades de terapia, mas nós caímos na situação de pessoas. Nós precisamos de pessoas para trabalhar nessa unidade.

Esse é um desafio que a gente tem, que é de formar pessoas capacitadas; isso é um dos desafios que a neonatologia brasileira enfrenta. Além do acesso. Ainda temos crianças que morrem na primeira semana de vida que poderiam perfeitamente não ir a óbito. Pelas condições que têm, as condições de trabalho, as condições de assistência nesse nosso país tão grande.

Mas eu sempre tenho esperança de que dias melhores virão e estamos lutando para isso e trabalhando para isso, para formar pessoas, para, além de formar pessoas e capacitar essas pessoas, não só o médico, mas a equipe que vai atender o recém-nascido, mas também de estimular o serviço público, o Estado, a dar suas contribuições no sentido de dispor mesmo de unidades que possam atender.

E também o estímulo ao pré-natal. Nós sabemos que com um bom pré-natal, temos a chance de diminuir muito os problemas na gestação e no parto.

- A senhora lançou o livro “Infecções Congênitas e Perinatais”, com base nos seus 30 anos no Ambulatório de Infecções Congênitas no Hospital Universitário Edgard Santos, da Universidade Federal da Bahia. Qual foi a motivação para escrever o livro?

Eu tive a motivação de realmente difundir mais o conhecimento das infecções congênitas, de modo que o pediatra, o estudante de medicina, tivesse esse acesso a essas informações.

Esse livro é fruto de um trabalho do Ambulatório de Infecções Congênitas e Perinatais que nós criamos, em 1990, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia. Então, temos mais de 30 anos desse ambulatório, formamos muita gente, não só médicos, infectologistas, pediatras, mas enfermeiros, dentistas que faziam pós-graduação lá, porque tínhamos as infecções.

O Ambulatório foi motivado inicialmente pela AIDS. Nós tínhamos as crianças que precisavam ser atendidas. Naquela época, nós voltamos dos Estados Unidos de um curso de AIDS perinatal. Nós cofundamos este ambulatório, e fui coordenadora até o ano passado. Hoje, continuo atuando lá, mas na parte de pesquisa.

O desejo de divulgar esses conhecimentos para os estudantes de graduação, para as equipes de saúde foi o que, junto com a de médicos desse ambulatório e outros profissionais convidados, fizemos esse livro com esse objetivo: difundir o conhecimento das infecções fúngicas, que são tão importantes.

Por exemplo, a sífilis continua sendo um desafio para a saúde pública. Então, nós falamos de sífilis, de HTLV, de AIDS, e das infecções virais mais recentes, Zika Vírus, dengue. Esse livro tem essa abrangência, Doença de Chagas, Toxoplasmose. São várias as infecções fúngicas e são muito importantes para a avaliação do recém-nascido.

As pessoas já têm acesso a ele. E é um livro que tem tido uma demanda grande.

- Falando um pouquinho da ABP, como foi sua entrada para a Academia?

Minha entrada para Academia foi em 2015, por meio de indicação do meu professor titular de pediatria, aquele professor que eu falei que iria fazer neonatologia, mas ele falou para mim "a senhora precisa primeiro fazer pediatria". Então, foi ele, uma das grandes referências na minha vida profissional, era um amigo meu, o professor Nelson Barros. Ele foi o primeiro presidente da Academia Brasileira de Pediatria e me indicou.

Tomei posse em maio de 2015, lá no Fórum em Aracaju. Ele tinha falecido há dois meses e não assistiu a minha posse. Para mim, tem sido muito importante estar e participar da Academia. Para mim, é motivo de honra estar presente ali, sobretudo com antigos professores que foram referências para mim e para a pediatria brasileira. E a ABP tem dado enorme contribuição à pediatria brasileira.

- E, para senhora, qual é o papel da ABP?

A Academia tem um papel de aconselhamento, de assessoramento à Sociedade Brasileira de Pediatria, ao Conselho Superior, à Diretoria da Sociedade Brasileira de Pediatria. E as suas contribuições são filosóficas, são as mesmas contribuições de assistência que têm os nossos fóruns. Eles dão enorme contribuição à população.

Realizamos fóruns em diferentes estados do Brasil e temos assessoria mesmo do nosso jornal. O nosso jornal funciona como veículo de informação, de formação de pessoas, e também tem o lado da nossa história da pediatria.

Eu fui, na última gestão, coordenadora da Comissão de História da Pediatria, que é muito interessante para que os novos pediatras tomem conhecimento, a sociedade em geral tome conhecimento do quão a pediatria é importante, de como a pediatria contribui para a saúde do nosso país.

Então, eu acho que a Academia tem esse papel filosófico, esse papel de assessoramento, de aconselhamento tanto à diretoria da Sociedade Brasileira como ao Conselho Superior. Ela é importante nesse sentido, tem uma atuação bastante ativa.

- Com sua experiência, o que a senhora sabe hoje e que gostaria de ter sabido ao se formar?

Eu acho que eu faria tudo novamente. Eu tinha as coisas muito bem norteadas quando eu me formei. Eu já sabia o que eu iria fazer do ponto de vista profissional. Já sabia o que queria fazer, que seria ensinar, eu tenho uma história com ensino desde a minha infância.

Aos sete anos, o que eu aprendia na escola, eu alfabetizava os dois funcionários da minha casa. Aos 13 e 14 anos, eu ensinava francês, sem nenhum custo financeiro, a colegas que estavam na segunda época, coisas desse tipo. Então, eu já tinha um vínculo, também de uma família em que as pessoas são muito ligadas ao ensino. A família materna gosta muito de ensino. Meu bisavô era professor. Enfim, eu tenho esse vínculo grande com ensino.

Ao me formar, já sabia que ia ser neonatologista, que eu ia seguir uma carreira universitária. Isso para mim estava muito claro. Mas eu acho que, hoje, pensando, teria de exigir menos de mim.

Eu sempre fui muito exigente, não que minha família cobrasse, mas era uma autoexigência muito grande. Eu acho que a gente precisa, e fui aprendendo no decorrer da vida, ser menos exigente, cobrar menos. Mas eu lembro que, na época que eu me formei, eu era extremamente exigente comigo.

Mas, de um modo geral, tenho sido muito feliz na minha vida acadêmica e pessoal também. Com o meu companheiro, falecido há 13 anos, fomos muito felizes, com minhas filhas e agora os meus netos. Ainda tenho o privilégio de ter minha mãe viva aos 96 anos e ter uma família muito harmoniosa, muito ligada. Eu sou muito feliz assim, tanto do ponto de vista profissional quanto do ponto de vista afetivo.