TERMINALIDADE NO PRONTO-SOCORRO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA ANÁLISE ÉTICA E BIOÉTICA
A terminalidade de crianças e adolescentes no contexto de um pronto-socorro é uma questão complexa que exige dos profissionais de saúde não apenas habilidades clínicas, mas também uma abordagem ética e bioética robusta. Essa abordagem deve considerar os direitos e interesses do paciente, a dinâmica familiar e a definição do melhor interesse do paciente. A terminalidade pode surgir em situações de doenças crônicas avançadas ou em condições agudas e inesperadas, como acidentes graves. Independentemente da causa, essas circunstâncias exigem decisões difíceis sobre a continuidade ou limitação dos tratamentos, sempre com respeito à dignidade do paciente e às orientações familiares. Este texto visa discutir as questões éticas e bioéticas associadas ao cuidado de crianças e adolescentes em fase terminal atendidos em prontos-socorros, com ênfase na autonomia, no consentimento, na comunicação com as famílias e nas decisões sobre intervenções médicas.
A autonomia e os direitos das crianças e adolescentes
A autonomia é um princípio fundamental da bioética, que está intimamente ligado à questão dos direitos das crianças e adolescentes. No contexto brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição da República garantem que os pais são responsáveis pelas decisões sobre a saúde de seus filhos menores, considerando sempre o melhor interesse da criança. O ECA, em seu artigo 6º, reconhece que a autoridade dos pais deve ser exercida com o intuito de promover a dignidade e os direitos do menor, respeitando sua condição de pessoa em desenvolvimento. No entanto, nas situações de terminalidade, os profissionais de saúde devem avaliar se as decisões dos pais estão de acordo com as melhores opções terapêuticas e com os direitos do paciente, respeitando sua dignidade e sua condição irreversível (1,2).
Quando o interesse de um tratamento prolongado entra em conflito com a dignidade do paciente ou a irreversibilidade do seu quadro, é necessário que o médico busque alternativas que priorizem o alívio do sofrimento, sem recorrer ao excesso terapêutico. A autonomia dos adolescentes, que começa a se afirmar com o aumento da maturidade cognitiva e emocional, também deve ser levada em consideração, com a participação deles nas decisões, quando possível e adequado ao seu estágio de desenvolvimento (3).
O excesso terapêutico e a distanásia
No contexto de pacientes terminais, o conceito de "excesso terapêutico" e distanásia torna-se particularmente relevante. O excesso terapêutico refere-se à utilização de intervenções médicas que não trazem mais benefícios claros ao paciente ou que impõem sofrimento adicional desnecessário. A distanásia, que é o prolongamento desnecessário da vida em condições irreversíveis de sofrimento, deve ser evitada. O Código de Ética Médica (art. 6º e 57) destaca que a função do médico é aliviar o sofrimento do paciente, promovendo um fim de vida digno, o que muitas vezes envolve a decisão de interromper tratamentos agressivos que não contribuem para a recuperação ou melhoria da qualidade de vida do paciente (4).
Em situações de terminalidade pediátrica, "fazer o bem" não significa sempre "fazer tudo" para preservar a vida a qualquer custo. A decisão de interromper a reanimação ou de não iniciar tratamentos invasivos deve ser tomada com base na avaliação do prognóstico e da irreversibilidade do quadro clínico. A aplicação de cuidados paliativos, com o foco no conforto e no respeito à dignidade do paciente, é muitas vezes a opção mais ética e humana (5,6).
A comunicação com a família
A comunicação com a família é uma das questões mais desafiadoras no atendimento de crianças e adolescentes em fase terminal, especialmente em prontos-socorros, onde o vínculo com a família pode ser inexistente ou incipiente. Em situações de emergência, muitas vezes, a equipe de saúde não tem tempo para estabelecer uma relação de confiança com os familiares, o que torna ainda mais difícil discutir o prognóstico e as opções de tratamento. No entanto, a comunicação clara, empática e respeitosa é crucial para garantir que as decisões sejam alinhadas com os valores da família e as necessidades do paciente.
Em situações de terminalidade, quando as decisões sobre continuar ou interromper o tratamento envolvem um grande sofrimento emocional, a participação da família nas decisões deve ser estimulada. Quando os pais ou responsáveis não concordam com a orientação da equipe médica, é importante que os profissionais de saúde forneçam informações claras, apoiem emocionalmente a família e busquem chegar a um consenso. A comissão de bioética do hospital pode ser chamada para ajudar a mediar conflitos, e, em última instância, pode ser necessário recorrer à decisão judicial, se a família insistir em um tratamento que a equipe médica considere desproporcional ou desnecessário (7).
O apoio emocional à família também é um aspecto fundamental, pois ajuda os familiares a lidarem com a angústia e o sofrimento do processo de morte iminente. Estudos indicam que, quando a família está bem-informada e apoiada pela equipe de saúde, o processo de luto é menos traumático e a angústia é reduzida (8).
Desafios na prática do Pronto-Socorro
No pronto-socorro, as decisões sobre a terminalidade muitas vezes precisam ser tomadas rapidamente, sem tempo para um planejamento ou reflexão profunda. O conceito de "morte encefálica" e a irreversibilidade do quadro clínico são fundamentais para orientar essas decisões. Quando não há mais possibilidade de recuperação, a prioridade da equipe de saúde deve ser proporcionar conforto e dignidade ao paciente, através de cuidados paliativos, evitando o sofrimento adicional causado pela continuação de tratamentos que não são mais eficazes (9).
A equipe médica deve estar preparada para lidar com a pressão emocional de decisões difíceis, ao mesmo tempo em que mantém a clareza na comunicação com a família. A transparência é essencial para que os familiares compreendam que a equipe fez tudo o que estava ao seu alcance para salvar a vida do paciente, e que a decisão de interromper as intervenções foi baseada em uma avaliação cuidadosa do prognóstico.
O Papel da Espiritualidade e da Ética do Cuidado
A espiritualidade desempenha um papel significativo em muitas culturas, influenciando as decisões sobre o fim da vida. Em contextos religiosos, especialmente em tradições judaico-cristãs, pode haver uma forte ênfase na preservação da vida, o que dificulta a aceitação da morte como parte do ciclo natural. Nesse sentido, a ética do cuidado deve ser sensível à diversidade religiosa e cultural das famílias, respeitando suas crenças e valores. O Papa João Paulo II, em 2003, destacou a diferença entre a eutanásia e a decisão de não prolongar a vida de forma artificial quando não há mais esperança de recuperação. A decisão de interromper intervenções médicas deve ser entendida como uma escolha ética de aliviar o sofrimento e respeitar a dignidade do paciente e sua família (10).
A ética do cuidado envolve não apenas o cuidado físico, mas também o emocional e espiritual. A equipe de saúde deve garantir que as necessidades espirituais e culturais do paciente e de sua família sejam atendidas, oferecendo suporte psicológico e espiritual quando necessário.
Considerações finais
A terminalidade no pronto-socorro de crianças e adolescentes exige uma abordagem que vá além das decisões clínicas, envolvendo também aspectos éticos, legais, emocionais e culturais. As questões da autonomia, do consentimento informado e da comunicação com a família são cruciais para garantir que as decisões tomadas estejam alinhadas com os melhores interesses do paciente. Além disso, a equipe de saúde deve estar preparada para lidar com a complexidade do excesso de medidas terapêuticas, ou seja, evitar a obstinação terapêutica, oferecendo cuidados paliativos que priorizem o conforto e a dignidade do paciente.
Em última análise, a bioética e a ética do cuidado devem ser os principais guias para os profissionais de saúde em situações de terminalidade pediátrica, para que a vida e a morte sejam tratadas com o máximo de respeito e humanidade, sempre com o objetivo de aliviar o sofrimento e garantir a dignidade de todos os envolvidos.
Referências Bibliográficas
1. Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990).
2. Constantino, C. F. Dilemas éticos no tratamento do paciente pediátrico terminal. Revista Bioética, 2009, 13(2).
3. Almeida RA, Lins L, Rocha ML. Dilemas éticos e bioéticos na atenção à saúde do adolescente. Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (2): 320-30
4. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019.
5. Pessini, L. O cuidado da dor e do sofrimento humano. In: Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola, 2001.
6. Segre, M. Eutanásia: aspectos éticos e legais. Revista Ass Med Bras, 1986, 32:7-8.
7. Constantino, CF; Hirschheimer MR. Dilemas éticos no tratamento do paciente pediátrico terminal. Bioética. 2005;13(2): 85-96.
8. Porter, L. et al. Comunicação e tomada de decisão nas situações de fim de vida. JAMA, 2013, 310(3): 1-6.
9. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Diário Oficial da União.
10. João Paulo PP. II. Mensagem para o 11º dia mundial do doente. Vaticano em 2 de fevereiro de 2003. Disponível em: http://www.diocesefranca.org.br/msgpp200302a.html.