CONSTITUIÇÃO DA RESILIÊNCIA: DOS CONHECIMENTOS DA NEUROCIÊNCIA ÀS IMPLICAÇÕES PARA PRÁTICA PEDIÁTRICA
As teorias sobre o desenvolvimento da criança mudaram muito do início do século XX até os dias atuais. Das teorias normativas, que se pautavam em um padrão “de normalidade” a partir de uma ótica maturacionista, às teorias modernas, que buscam compreender o desenvolvimento infantil e suas variações considerando a influência dos fatores contextuais. O conhecimento sobre a constituição da resiliência acompanhou essa mudança de paradigma.
Dessa forma, a resiliência, ou capacidade de um indivíduo se adaptar a uma situação desfavorável, inicialmente era considerada como um atributo individual, dependente apenas de recursos psíquicos pessoais, mas, com os avanços nas teorias do desenvolvimento, passou a ser compreendida de uma forma mais abrangente e menos determinista. Acompanhando a nova perspectiva do desenvolvimento que surgiu na década de 70 com as teorias bioecológicas, a influência dos fatores contextuais começou a ser considerada no processo de aquisição da resiliência. Tanto os fatores protetores como a exposição a fatores de risco passaram a ser incorporados aos estudos, modificando a visão dos pesquisadores e dos profissionais envolvidos nos cuidados à criança e adolescente. Essa perspectiva mais abrangente e menos determinista vem modificando a assistência e permitindo muitos avanços nas intervenções direcionadas à promoção do desenvolvimento infantil.
A constituição da resiliência, atualmente, é compreendida a partir de uma abordagem integral e interdisciplinar, que incorpora diferentes conhecimentos relacionando as experiências e os efeitos neurobiológicos. Nesse sentido, os estudos da neurociência vêm trazendo inúmeros avanços, particularmente no conhecimento sobre o papel da exposição ao estresse na formação da arquitetura cerebral, impactos futuros e a aquisição de resiliência. Pesquisadores do Center on the Developing Child (CDC) da Universidade de Harvard, liderados por Charles Nelson e Jack Shonkoff, vêm demonstrando como as interações positivas no início da vida podem afetar positivamente a organização cerebral e, por outro lado, como a exposição ao estresse e a situações adversas pode ter o efeito contrário.
De acordo com esses estudos, o estresse pode ser classificado em três tipos: o estresse positivo, o tolerante e o estresse tóxico, que variam em intensidade, duração e cujos impactos dependem do grau de suporte que a criança recebe. O estresse positivo se refere a adversidades de menor intensidade e duração, sob as quais a criança recebe apoio e suporte adequados. Nessas circunstâncias, o estresse não gera impactos negativos, podendo estimular a aquisição da resiliência e/ou de novas habilidades. O segundo tipo de estresse, denominado tolerável, representa uma situação indesejável de maior intensidade e/ou duração, mas que na presença de suporte adequado faz com que a criança supere a adversidade, sem deixar sequelas. Por outro lado, o estresse tóxico, pode ter impactos negativos para a vida futura da criança. Esse terceiro tipo de estresse traduz a presença de eventos adversos de maior magnitude e/ou duração, na ausência de suporte e apoio por parte dos cuidadores. Nessa situação, a liberação de neurotransmissores e hormônios ligados ao estresse podem modificar o desenvolvimento da arquitetura cerebral e comprometer o desenvolvimento da criança. Dessa forma, essas pesquisas da neurociência consideram a forte influência dos fatores contextuais sobre os aspectos biológicos, a partir de mecanismos epigenéticos, representando avanços no conhecimento dos mecanismos de aquisição da resiliência.
As situações aos quais um indivíduo é exposto ao longo da vida demandam flexibilidade e capacidade de adaptação. Essas habilidades cognitivo-adaptativas e a capacidade de superar as condições adversas têm sido consideradas essenciais para o desempenho acadêmico, profissional, relacionamentos pessoais e bem-estar pessoal. Embora possam ser adquiridas ao longo de toda a vida, é durante a infância que existe a maior “janela de oportunidade” para que essas competências sejam desenvolvidas. Por outro lado, a exposição a experiências adversas no início da vida, na ausência de um cuidado sensível e responsivo, pode modificar essa trajetória.
Essa evolução teórica e o conhecimento dos mecanismos e dos fatores implicados no desenvolvimento da capacidade adaptativa às adversidades, orientam a prática assistencial pediátrica e podem embasar a formulação de intervenções e de políticas públicas voltadas à promoção da saúde da criança e do adolescente. O pediatra tem um papel fundamental na constituição da resiliência das crianças sob sua responsabilidade, uma vez que tem acesso às famílias e ao ambiente de vida durante o acompanhamento do desenvolvimento de seus pequenos pacientes. Com esse conhecimento pode orientar e intervir na proteção e na promoção do desenvolvimento das crianças com vistas à aquisição das habilidades cognitivo-adaptativas, levando em conta que as experiências do início da vida têm influência na organização da arquitetura cerebral e na capacidade de superar as adversidades que a vida impõe.
Referências bibliográficas