EDITORIAL

Estaríamos retornando ao tempo dos “médicos práticos”?

Prof. Dr. Jefferson P. Piva
Diretor de Comunicação da Academia Brasileira de Pediatria
Membro titular da cadeira nº 30 da ABP

Até o final do século XIX, a constituição de vários estados do Brasil permitia que cidadãos sem formação acadêmica regular atuassem como médicos, cuidando da saúde da população, denominado por alguns como os “médicos práticos”. De outro lado, os poucos médicos formados de forma regular no exterior ou nas primeiras faculdades de Medicina do Brasil (“homens da ciência”) rebelavam-se e denunciavam publicamente esta situação desconfortável e descompromissada com os melhores interesses da sociedade. Felizmente, no início do século XX, prevalece o bom senso e passa a ser essencial a graduação em medicina para exercer a profissão em nosso país.

Já nesta época, alguns países nórdicos identificavam que a graduação em Medicina não era garantia de habilitação suficiente para o atendimento requerido nas diversas áreas da medicina. A partir daí, e motivados pelo acelerado desenvolvimento do conhecimento da Medicina, alguns serviços de referência desenvolvem um processo sistematizado de treinamento de médicos já graduados, combinando ensino teórico com aprendizado prático no ambiente hospitalar. Era o nascedouro da residência médica, conceito que rapidamente difundiu-se ao redor do mundo, tornando-se o modelo de habilitação de novos médicos em suas especialidades até os dias atuais. 

No Brasil, os programas pioneiros de residência em Pediatria surgem nos anos de 1950 nas principais capitais do sul e sudeste e rapidamente se multiplicam, instalando-se nas diversas regiões de nosso país. Estes programas, além de responsáveis pela habilitação em pediatria de um enorme contingente de pediatras, se constituíram em áreas de pesquisa, geração de conhecimento com edição de livros, publicações científicas, embriões de programas de pós-graduação e inovação tecnológica. No início do século XXI, a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) definiram 48 especialidades médicas (hoje, 55) e outras 48 áreas de atuação (hoje, 61). Além de estabelecer os limites de competências de cada especialidade ou área, definiram também os respectivos pré-requisitos para obter tal titulação, assim como o conteúdo e tempo de formação em cada programa de residência médica. Em consonância com estas mudanças, a Sociedade de Brasileira de Pediatria identificava que nosso programa de residência, após mais de seis décadas em prática, necessitava de ajustes. O conhecimento nas diversas áreas pediátricas e incorporação de novas técnicas exigia uma nova matriz educacional com ampliação no tempo de formação (agora três anos) e com maior exposição em determinadas áreas (Neonatologia, Emergência, UTI pediátrica, entre outras).

Paralelamente, foi sendo gestado e implementado em nosso país um movimento em direção exatamente oposto à qualificação e oferta de médicos adequadamente habilitados. Por interesses de cunho econômico, demagógico e eleitoreiro, foi propagado à população que multiplicando o número de escolas médicas teríamos um sistema de saúde mais efetivo e inclusivo. Os autores desta narrativa omitiram que a imensa maioria destas novas faculdades não dispunha de hospitais escola para atividades de ensino e tampouco um corpo docente minimamente qualificado na missão educacional. Somos hoje o segundo pais em número de faculdades de Medicina (390), sendo superados apenas pela Índia com seus 1,3 bilhões de habitantes. Duplicamos o número de escolas médicas em menos de dez anos e quadriplicamos o número de médicos que tínhamos em 1990! Nesse cenário, ninguém mais lembra da premissa para o aumento de escolas médicas: tornar o sistema de saúde mais efetivo e inclusivo! Porém, os objetivos econômicos, demagógicos e eleitoreiros foram plenamente contemplados!

Este movimento tem várias consequências. Na perspectiva do aluno (consumidor), poderia ser tipificado como estelionato, pois ilude jovens inexperientes e suas famílias com a oferta de um produto de alta qualidade (!?), sem a mínima condição para cumprir tal promessa. E, por incrível que possa parecer, mesmo assim, o “negócio” segue em funcionamento com o beneplácito das instâncias governamentais que deveriam fiscalizar e punir as más instituições. Por outro lado, nos egressos destas escolas sem qualificação, os sentimentos de frustração e despreparo profissional é uma constante. São profissionais com menor conhecimento, experiência e habilidades essenciais para praticar uma médica básica com alguma segurança e eficácia. Consequentemente, a imensa maioria não obterá vagas em programas de residência, sendo condenados a uma atuação profissional de baixa qualidade, pouco resolutiva e insatisfatória. Na perspectiva assistencial, está suficientemente documentado que médicos mal formados e sem a devida qualificação são menos resolutivos, mais onerosos ao sistema por utilizarem mais (e de forma inadequada) exames complementares, assim como apresentam maiores índices de eventos adversos com suas desastrosas consequências. Exatamente o oposto das premissas propagadas para abertura de tais faculdades. Mas, agora, ninguém mais lembra disso.

Em paralelo a este desvio ocasionado pela proliferação de médicos mal preparados em escala industrial, o governo brasileiro publicou um decreto aparentemente despretensioso (11.999/2024) mas com consequências muito perigosas! O referido decreto propunha uma nova composição na CNRM incluindo representantes de diversas instâncias governamentais. Inquestionavelmente, este ato teria implicações na organização, implementação e no futuro da residência médica do Brasil. Neste ato, de forma inédita, a CNRM deixaria de ser uma instância iminentemente técnica e independente, transformando-se em órgão de governo e atrelada aos seus interesses. Após intensa discussão com as entidades médicas, felizmente, um novo decreto foi publicado (12.062/2024) corrigindo tais distorções, ampliando agora a composição da CNRM com um contingente maior de representantes de entidades médicas. 

Considerando que a competência técnica na composição da CNRM tenha sido preservada neste novo ato, pode-se prever que os critérios de qualidade do programa de residência médica continuem sendo prioritários no momento de seu credenciamento. Assim, nesta perspectiva, não há como vislumbrar em curto e médio prazo que a enorme quantidade de médicos egressos das quase 400 faculdades de medicina do país tenha à sua disposição vagas suficientes em programas qualificados de residência médica. Neste cenário, é possível que venhamos a reviver o que ocorria há 150 anos no Brasil, com o retorno dos “médicos práticos”, agora com uma nova roupagem. Nesta categoria estariam incluídos aqueles profissionais oriundos de faculdades insuficientes e sem treinamento formal em programas de residência médica.


Contrariamente ao que ocorria no final do século XIX, estes “médicos práticos” estão legalmente protegidos pelo sistema vigente, pois foram diplomados em instituições criadas, reconhecidas e protegidas pelos governos recentes. E, não raras vezes, serão os primeiros médicos disponíveis para atendimento da população mais necessitada. Infelizmente, deve-se concluir que nos primórdios do século XX era muito mais fácil identificar e escolher o profissional mais preparado. Alertar para esta situação injustificável e que coloca em risco a saúde de nossa população é nosso dever, como fizeram nossos colegas (“homens da ciência”) no princípio do século passado. Espero que tenhamos a mesma sorte de sermos ouvidos pelas autoridades responsáveis para interromper este descalabro.