A história do pediatra Mario Santoro Jr. se confunde com a da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Sua gestão na presidência da entidade, de 1994 a 1996, foi um período de grandes avanços para a especialidade e seus profissionais – descentralização da SBP, tornando-a mais nacionalizada, implementação dos Departamentos Científicos e do Programa Nacional de Atualização Pediátrica (PRONAP), além da criação da Academia Brasileira de Pediatria (ABP).
Ocupante da cadeira nº 28 da ABP, o pediatra com atuação na área de Medicina do Adolescente, autor do livro Dicas do Pediatra, além de vários artigos científicos, relembra, em sua entrevista ao Boletim da ABP, sua decisão em cursar Medicina, como foi ser da primeira turma Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, das Faculdades de Ciências Médicas (FAC) e a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
ABP: Como foi sua escolha pela Medicina e, especificamente, pela Pediatria?
Mario Santoro Jr.: Meu pai era um economista, contador e professor de contabilidade e minha mãe ocupava-se do gerenciamento de nossa casa. Não havia médicos na família, apenas a verdadeira admiração pela profissão médica, sobretudo por um médico, dr. Teodoro Lerner, que era clínico geral com larga clientela não só no nosso bairro, o Bom Retiro, mas em toda São Paulo, na época uma cidade bastante provinciana. A admiração por esse médico era de todos que o conheceram ou foram seus clientes, e sua história mereceria uma crônica especial. Dr. Lerner, além de amigo de nossa família, era compadre dos meus pais e residíamos muito próximos. Tinham um filho e uma filha, e posso dizer que crescemos juntos. Aos poucos, fui admirando a vida do dr. Lerner, sua forma de trabalhar e fui me apaixonando pelo modo de ele atuar como médico, e assim nasceu o desejo de vir a ser igual a ele. No Curso Científico, que era o Ensino Médio da época, cogitei em vir a ser engenheiro, pois a matemática e a física me fascinavam. Mas a ideia de ser médico falou de forma mais potente. No quarto ano de Medicina, tive contato com a Pediatria e com o professor titular dela, Paulo de Barros França, que voltara dos Estados Unidos onde se capacitara. Novamente imensa admiração pela maneira como atuava e também pela descoberta de uma especialidade que não se limitava a um órgão ou a um único sistema orgânico, mas que era, em essência, toda Medicina agora voltada para um largo período da vida. Não tive dúvidas que era o que queria fazer. Esses dois médicos, Lerner e França, são os responsáveis pelas minhas escolhas profissionais. Aliás, ambos não tiveram o reconhecimento histórico como deveriam: um porque, muito antes de se falar em estratégia da família, fazia a verdadeira Saúde da Família e o outro por ter sido um dos maiores pediatras deste País.
ABP: O senhor foi da primeira turma da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, da FAC. Como foi essa experiência, pois foi uma novidade tanto para vocês, alunos, quanto para muito dos professores?
Mario Santoro Jr.: Realmente fui e tenho muita honra de pertencer à Primeira Turma da FCMSC. Quando fiz o meu primeiro vestibular no ano de 1962 haviam poucas Escolas Médicas no Brasil. Em São Paulo apenas três: FMUSP, EPM, hoje UNIFESP, e PUC, em Sorocaba. Nesse ano, fiquei o sétimo excedente na FMUSP. Voltei a fazer o Curso Brigadeiro e, no ano seguinte, entrei na Faculdade de Campinas, hoje Unicamp, e também em quinto lugar na FCMSC. Realmente, fomos pioneiros na recém-criada Escola. Lembro-me bem da dificuldade em chegar cadáveres para estudos de Anatomia, bem como o constrangimento do prof. Aidar em ter que suspender as aulas de anatomia devido a este fato. Muitas foram as dificuldades iniciais, mas que graças à tenacidade de um grupo de professores, liderados pelo grande cirurgião prof. Emílio Athié, empenhados em construir uma das melhores escolas médicas do País, foram sendo superadas e o desiderato atingido com muita galhardia. Na verdade, muitos professores tinham experiência grande de ensino, pois a Santa Casa foi por muitos anos o Hospital Escola da FMUSP até sua mudança para Pinheiros e também foi Hospital Escola da Escola Paulista de Medicina hoje UNIFESP. Uma das grandes características da Santa Casa era a importância que dava à propedêutica médica, sendo que muitos dos sinais clínicos amplamente utilizados para avaliação clínica tem nomes de grandes médicos que lá atuaram. Um dos grandes diferenciais dessa nova Escola era colocar os alunos já desde o primeiro ano em contato com os pacientes. Nessa fase, aprendíamos condutas adequadas para com eles, o respeito que mereciam e nossa gratidão por emprestarem seus corpos para praticarmos os procedimentos que nos ensinavam. Como alunos, fomos protagonistas de muitas iniciativas, como termos fundado o Centro Acadêmico Manuel de Abreu (CAMA), Atlética, o nosso bar, denominado a TOCA, a experiência da disciplina consciente onde deveríamos pagar o que consumíamos sem necessidade de alguém cobrar – claro a experiência foi frustrada... e tantas outras iniciativas que tivemos, como desde muito cedo organizarmos a viagem em grupo – dois ônibus – para visitarmos a Europa.
ABP: O senhor hoje tem críticas ao ECA, que foi uma luta de toda a sociedade e da própria SBP. O que o leva a essas críticas e quais são elas?
Mario Santoro Jr.: Peço licença para contextualizar a resposta. A década de 80 encontrou o nosso País em franco processo de redemocratização. Havia no País o grande debate sobre as ideias de uma nova Constituição, que veio a se efetivar mais para frente na Assembleia Constituinte e depois com a promulgação do que se denominou a CONSTITUIÇÃO CIDADÃ. Também ocorria nessa época e em nível internacional a elaboração de um novo regramento dos direitos das Crianças e dos Adolescentes. O objetivo de um grupo constituído por 40 países – que incluía o Brasil – era transformar a Declaração de Direitos para Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Uma vez assinada, a Convenção obrigaria seus signatários a implementarem esses regramentos (para a Declaração, a adesão era voluntária). Essa nova convenção inovava, pois introduzia o conceito de Proteção Integral para as Crianças e para os Adolescentes. Não mais o termo menores, mas sim crianças e adolescentes. No Brasil, os assuntos legais referentes a essa fase de vida eram regidos pelo Código de Menores que se preocupava apenas os infratores, mas nada dizia a respeito de medidas protetivas e preventivas para que aqueles que estavam nessa faixa etária atingissem seu pleno potencial de desenvolvimento imbuído dessas novas ideias. Eu e o saudoso e ilustre prof. Antônio Marcio Lisboa fundamos o Comitê de Direitos da Criança e do Adolescente na SBP, que tratava de temas que vieram a ser conhecidos como a nova morbidez pediátrica – crianças de rua. Maus tratos, violência, síndrome de Munchausen, suicídio e muitos outros que até então não eram objetos de discussão na SBP. E, por oportuno, era o grande tema dos Direitos da Criança e do Adolescente a ser tratado na nova Constituinte. Trabalhando com outros grupos da Sociedade, apresentamos à Constituinte um projeto de Emenda Constitucional com mais de 1.000 assinaturas para que esse tema fosse incluído na nova Constituição; o que ocorreu, pois tínhamos o número necessário de assinaturas. Votado e aprovado, veio a ser o artigo 227 da Constituição. Contudo, por não ser autoaplicável, ele necessitava de uma lei ordinária para sua aplicação. Essa lei era a 8.069, de 13 de julho de 1980, conhecida como ECA. Por um acordo das lideranças partidárias, a lei foi revisada pelas entidades que apresentaram o projeto, cabendo à SBP revisar a parte da saúde. Diferentemente do que normalmente ocorre, quando as leis visam regrar comportamentos sociais existentes, o ECA previa que a sociedade sofreria uma transformação; na prática, isso não ocorreu, a não ser na superficialidade, mas não na essência. Pelo contrário, o crime é que se aproveita muitas vezes do ECA. Para nossa sociedade atual, várias partes do ECA é um desserviço. Não me refiro a todo ECA, mas apenas àquelas partes que dão impunidade e aumentam a violência na sociedade. Chego a ter peso na consciência por ter defendido com tanta ênfase o ECA naquela fase da minha vida. Não me orgulho disto.
ABP: Ao assumir a presidência da SBP em 1994, o senhor iniciou uma série de mudanças, como a descentralização da Sociedade e a criação dos Departamentos. Como foi promover essas mudanças?
Mario Santoro Jr.: Durante muitos anos a SBP estava – e continua até hoje – sediada no Rio de Janeiro e se confundia grandemente como uma sociedade carioca de Pediatria com pouca atuação das sociedades estaduais. Desde a gestão do saudoso prof. Pedro Celeny e do prof. Luis Eduardo, se iniciou a valorização do Conselho Superior da SBP, dando voz e voto às Sociedades Estaduais. Na minha gestão, dei um passo além iniciando a descentralização do Gabinete da Presidência que, a partir dali, iria para o Estado de onde se originava o presidente, simbolizando que naquele Estado estava na Presidência e, portanto, passando a ser a SBP uma Sociedade Nacional. Tenho impressão que, como efeito colateral, reforçamos a Sociedade de Pediatria do Rio de Janeiro, pois essa, sim, deveria ser a entidade carioca de Pediatria e deveria participar na SBP como as demais Sociedades Estaduais.
A departamentalização dos antigos comitês foi atendendo à ideia de congregar muitos especialistas de uma certa disciplina, o que não caberia num comitê, pois esses são constituídos por um grupo pequeno de pessoas. Criamos dentro dos comitês os núcleos gerenciais que, como o nome diz, gerencia as atividades dos Departamentos. Tenho que a ideia foi vencedora, pois desde aquela época, 1994, os Departamentos se mantêm, embora muitos tenham sido criados posteriormente, mas com a mesma formatação.
ABP: O senhor foi um dos responsáveis pelo Programa Nacional de Atualização Pediátrica (PRONAP) na SBP. Quando percebeu a necessidade desse tipo de Programa para os pediatras?
Mario Santoro Jr.: Na minha gestão à frente da SBP, percebemos que o perfil dos médicos e, principalmente dos pediatras, estava sofrendo uma mudança na proporção de gêneros, pois com uma célere velocidade aumentava o quantitativo de mulheres. Ao tempo que assumiam novos desafios, as mulheres continuavam com seus compromissos familiares – casa, filhos, etc. – pois à época essas tarefas não eram geralmente divididas pelo casal, ficando a responsabilidade só com as mulheres. Claro, isso de forma genérica podendo haver exceções. Contudo, as exigências de distinção de sexos. A internet não existência e, portanto, nem os cursos EAD. Nessa ocasião, eu representava a SBP na Associação Latino-Americana de Pediatria (ALAPE) e acabei por conhecer uma nova metodologia que permitia a qualquer pediatra, não importando o sexo, se atualizar na sua própria residência sem a necessidade de se afastar de seus lares, fato que não ocorria quando havia necessidade de deslocamentos para participar de cursos ou outros eventos. Essa metodologia era utilizada na Sociedade Argentina de Pediatria. Entendendo que essa metodologia poderia ajudar muitos pediatras e, sobretudo, às pediatras, apresentamos esse assunto ao Conselho Superior da SBP. Com a ideia aprovada, eu e o Prof. Claudio Leone fomos à Argentina para estudar toda a metodologia e, com a concordância da Sociedade Argentina de Pediatria, trouxemos o PRONAP para nossa Sociedade. Acredito ter sido essa outra ideia vencedora, pois o PRONAP é uma realidade até hoje, apesar da internet, dos EADs etc. e já capacitou milhares de pediatras.
ABP: Foi também durante sua gestão na Presidência da SBP a criação do Conselho Acadêmico atual Academia Brasileira de Pediatria. Para o senhor, qual é o objetivo da ABP? E qual sua opinião sobre ela hoje e o que espera dela para o futuro?
Mario Santoro Jr.: Peço licença para ler um editorial que fiz sobre esse tema e que penso responde suas perguntas:
“A Academia Brasileira de Pediatria, por seu regulamento, é um órgão de aconselhamento e assessoramento do Conselho Superior e da Diretoria da Sociedade Brasileira, com os quais cabe colaborar com o embasamento filosófico e com atitudes que facilitem a continuidade de uma política em prol da criança e do adolescente e em apoio ao pediatra e aos indivíduos e instituições que dele cuidem. Reveste-se de caráter particular, funcionando harmonicamente com a administração da SBP. Tem representação e participação permanentes em pleno direito à voz na pessoa do seu Presidente, ou de quem o substituir na forma de seu Regulamento, junto ao Conselho Superior e à Diretoria da SBP.
Trata-se de um órgão que, ao tempo em que a cultua e preserva a história da Pediatria Brasileira, tenta desvendar e influir sobre o seu futuro, abrangendo os seus profissionais e o seu objetivo de preocupação, ou seja, as crianças e os adolescentes.
Conhecer a história da Academia Brasileira de Pediatria, tendo a exata percepção dos motivos que levaram o grupo dirigente da Sociedade Brasileira de Pediatria, na gestão de 94-96, a propor a sua criação aos seus órgãos máximos de deliberação, transcende a um simples relato histórico, já que demonstra a preocupação havida com o passado e o compromisso com o futuro. Sua história desde então demonstra o acerto dos que aprovaram a ideia de sua criação e seu sucesso deve ser creditado ao apoio que vem obtendo, desde o início, de todos os órgãos administrativos da Sociedade Brasileira de Pediatria, ao trabalho incansável de suas Diretorias e ao entusiasmo de seus membros.
A Academia Brasileira de Pediatria é uma filha que, nascida da SBP, vem por ela sendo carinhosamente apoiada, para que possa alcançar no futuro, com plenitude, seus desideratos.
Penso que os fundadores da Academia Brasileira de Pediatria, entre os quais tenho a honra de me incluir, podem se sentir recompensados e devem agradecer à Providência a oportunidade de terem participado desta história.”
ABP: Com sua experiência de vida e de carreira, o que o senhor poderia dizer aqueles que estão iniciando a caminhada na Pediatria?
Mario Santoro Jr.: Se você sonhou em ser pediatra, acredite no seu sonho, pois dará certo desde que seus olhos brilhem com o fato de ser pediatra, pois gostar do que se faz é a condição “sine qua non” para o sucesso.