PALAVRA DA PRESIDENTE

A epidemia de problemas de saúde mental entre crianças e jovens

Dra. Sandra Grisi
Presidente da Academia Brasileira de Pediatria
Membro titular da cadeira número 6 da ABP

A infância e a adolescência são fases críticas da vida para a saúde mental. Crianças e adolescentes adquirem competências cognitivas e socioemocionais que moldam a sua futura saúde psíquica e são importantes para assumirem papéis de adultos na sociedade. A saúde mental afeta o modo como as pessoas pensam, sentem e agem, incluindo o bem-estar mental, emocional e comportamental. Também desempenha um papel na forma como as crianças lidam com o estresse, se relacionam com os outros e fazem escolhas saudáveis. A qualidade do ambiente onde as crianças e os adolescentes crescem é fundamental para o seu bem-estar e desenvolvimento.

Hoje, há um conceito dominante que o mundo vive uma crise de saúde mental na infância. Vários fatores são apontados, incluindo o impacto da pandemia da COVID-19. Estudos demonstraram que a pandemia afetou significativamente a saúde mental de crianças e adolescentes em todo o mundo, exacerbando problemas existentes com o isolamento social, dificuldades acadêmicas, perda de cuidadores, dificuldades econômicas e exposição a traumas. Além disso, durante a pandemia, a saúde mental das mães foi particularmente afetada. Uma extensa investigação na China destacou os desafios enfrentados pelas novas mães com bebês entre 0 e 1 ano de idade, enfatizando a ansiedade, o estresse e as preocupações sobre o futuro. Em nosso meio, estudos demonstram um aumento significativo nos casos de depressão puerperal. Pesquisa realizada em São Paulo, sobre vínculo mães-bebês durante o período da pandemia, demonstrou fragilidade neste importante componente na relação mãe-bebê, que é base para o apego seguro. O sofrimento psíquico destas jovens mães pode ter repercussões no desenvolvimento futuro de seus filhos.

A pandemia da COVID-19 introduziu um conjunto de desafios para a sociedade levando a uma crise de saúde mental, mas, revendo a literatura, reconhecemos que as crianças e adolescentes vêm sofrendo há mais tempo. Nos 10 anos que antecederam a pandemia, sentimento de tristeza persistente e desesperança – bem como pensamentos e comportamentos suicidas – aumentaram em cerca de 40% entre os jovens, de acordo com o Centro de Controle de Doenças (CDC) nos Estados Unidos. Vários estudos em outros países indicam a mesma tendência.

Por mais dificuldades que a COVID-19 tenha causado, reconhece-se que não é o único fator que contribui para a crise atual. Para alguns autores, o uso das redes sociais tem um papel relevante nessa situação. Se por um lado as redes sociais proporcionam oportunidades de conexão e convivência entre jovens que podem estar isolados de seus pares, as mensagens negativas – incluindo bullying on-line e abordagens irrealistas sobre padrões em torno da aparência física – parecem ter um efeito muito prejudicial na autoestima de um indivíduo em formação. A par disso, devemos considerar o comportamento social atual que dá uma importância extraordinária à aprovação por parte das mídias sociais.

“Há claramente algum aspecto da vida on-line dos jovens que está contribuindo para a crise da saúde mental, mas, simplesmente não sabemos exatamente como se dá o processo”, reflete a psicóloga social Kathleen Ethier, PhD, diretora do CDC. Sem dúvida, um dos fatores que tem contribuído para os impactos negativos das redes sociais é a atual “cultura do cancelamento”, uma prática de exclusão, pela qual um grupo de pessoas promove o constrangimento, isolamento ou o boicote virtual daqueles que julgam estar “fora dos padrões” por elas considerados. As proporções que esse tipo de prática atinge são imensuráveis, podendo levar a prejuízos emocionais graves e irreparáveis nas crianças e adolescentes.

Em resumo, a atual crise de saúde mental na infância é multifacetada, influenciada por uma combinação de fatores sociais, econômicos e ambientais. A abordagem destas questões requer uma ação abrangente que envolva o apoio às famílias, a melhoria dos serviços de saúde mental e a criação de um ambiente estimulante para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.

Os problemas de saúde mental mais comuns entre crianças e jovens incluem:

  1. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH): Caracterizado por dificuldades de atenção, hiperatividade e impulsividade.
  2. Ansiedade: Inclui vários tipos de transtornos de ansiedade, como ansiedade generalizada, fobias, ataques de pânico e transtorno de estresse pós-traumático.
  3. Transtornos de Comportamento: Abrange condições como transtorno desafiador de oposição e transtorno de conduta, que envolvem comportamentos problemáticos e desafio à autoridade.
  4. Depressão: pode se manifestar como sentimentos persistentes de tristeza, desesperança e falta de interesse nas atividades.
  5. Trauma e Estresse: A exposição a eventos traumáticos, como violência doméstica, bullying ou a perda de um ente querido, pode levar a problemas de saúde mental em crianças.
  6. Transtornos alimentares: inclui condições como anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno da compulsão alimentar periódica, que podem ter graves consequências físicas e emocionais.
  7. Automutilação: comportamento em que as crianças se prejudicam intencionalmente, muitas vezes como mecanismo de enfrentamento de dor ou sofrimento emocional.
  8. Transtornos por Uso de Substâncias: Envolve o uso indevido de substâncias, como drogas ou álcool, que podem impactar negativamente a saúde mental e o bem-estar geral.
  9. Pensamentos e Comportamentos Suicidas: Uma preocupação séria, pois crianças e adolescentes podem ter ideação suicida, fazer planos ou tentar o suicídio.

Para combater esta epidemia, é fundamental que as escolas, famílias e comunidades trabalhem juntas para criar ambientes de apoio, aumentar o acesso a serviços de saúde mental e promover uma maior conscientização sobre a importância da saúde mental desde a infância. É essencial que todos os envolvidos no processo educativo e de crescimento das crianças estejam atentos e prontos para apoiar de maneira efetiva.

As soluções propostas para melhorar a saúde mental infantil incluem uma abordagem abrangente que envolve tanto ações preventivas quanto de promoção da saúde mental. Algumas das recomendações são:

  1. Promoção de Diálogo e Escuta Ativa: Estabelecer relações afetivas no círculo familiar, criar um ambiente aberto ao diálogo e praticar a escuta ativa são fundamentais para o bem-estar emocional das crianças e adolescentes.
  2. Prática de Atividades Prazerosas e Estabelecimento de Rotina: Incentivar atividades prazerosas como leitura e cinema, além de estabelecer uma rotina para diversas atividades, contribui para a qualidade de vida dos jovens.
  3. Alimentação Saudável, Sono Adequado e Exercícios Físicos: Uma boa alimentação, aliada a uma boa noite de sono e à prática regular de exercícios físicos, são aspectos fundamentais para a saúde mental infantil.
  4. Acompanhamento Médico Regular e Educação Emocional: Além do acompanhamento médico, é essencial que crianças e adolescentes aprendam a nutrir suas emoções e desenvolver habilidades emocionais.
  5. Psicoterapia e Análise: Orientar os pais sobre a importância da psicoterapia e análise para crianças e adolescentes, destacando os benefícios que essas práticas podem trazer para o desenvolvimento emocional da família como um todo.
  6. Ampliação do Programa Saúde na Escola (PSE): Recomenda-se ampliar a cobertura do Programa Saúde na Escola, incluindo ações de prevenção e promoção da saúde mental, realizar estudos de avaliação e monitoramento, e fomentar pesquisas sobre saúde mental.

Essas medidas visam não apenas prevenir problemas de saúde mental, como também promover um ambiente saudável e acolhedor para o desenvolvimento emocional e psicológico de crianças e adolescentes.

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