Patricia Tempski
Pediatra, Livre docente em Educação na Saúde
Coordenadora do Centro de Desenvolvimento de Educação Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Como educadora, eu sei que quem forma ao formar se reforma, inventa e se reinventa a cada encontro com os alunos, e que quando nos ocupamos em ensinar estamos de fato aprendendo, mais e sempre. Nos últimos meses, nossa disposição para acolher o novo e assimilar tecnologias foi colocada à prova quando a empresa Open AI permitiu e estimulou o acesso ao seu sistema de língua natural ChatGPT (generative pre-trained transformer).
Como uma pessoa que está sempre procurando por novidades testei o ChatGPT perguntando de uma forma bem-humorada: “Chat, por que minha avó viajou para Marte usando uma roupa de aqualouco e levou meu ursinho de pelúcia?”. Ele ou ela respondeu: “Se você não está me testando, deve estar brincando comigo. Porque não há relato na história de uma ser humano que tenha viajado para Marte, com roupas de banho. Sobre seu urso de pelúcia, não consigo opinar a respeito da decisão de levá-lo na viagem?”
Na sua opinião a explicação foi plausível? A resposta foi elegante? A interação foi cordial? Se você respondeu sim a essas perguntas, talvez como eu esteja se perguntando se há alguém conversando comigo? Porque o ChatGPT mimetiza uma interação humana com rapidez e clareza, em um sistema de geração de texto, a partir de perguntas ou demandas chamadas de “prompts”.
No entanto, suas respostas, embora claras, plausíveis e elegantes, não têm compromisso com a verdade, pois são geradas a partir de um modelo matemático baseado em probabilidade. O Chat analisa uma grande quantidade de dados e transforma palavras em números, prevendo a sequência lógica de palavras em um dado contexto e oferecendo ao usuário um texto coerente, mas não necessariamente verdadeiro.
O ChatGPT nos causou espanto e admiração, mesmo não sendo o primeiro sistema de inteligência artificial com o qual interagimos, pois certamente você assim como eu conhece a Siri e Alexa. A diferença dessa vez foi a abertura para que pudéssemos experimentar livremente o sistema, que foi em poucas semanas acessado por milhões de pessoas, que o testaram e ensinaram, uma vez que sua performance se baseia no feedback que recebe.
Entre outras razões, buscamos conhecer e usar o ChatGPT porque somos naturalmente curiosos, gostamos de informações pré-digeridas, tendemos a tomar como verdadeiro se for plausível e claro e somos sujeitos ao antropomorfismo projetando características humanas aos objetos e animais. Nesse caso, o ChatGPT ganhou um contorno humano, apesar de parecer, não é uma interação humana, mas sim humano-máquina. Parafraseando o escritor José Saramago no seu livro Pequenas Memórias, “naquele tempo o que parecia era, e o que era parecia”, nesse admirável mundo novo!
Segundo Clayton Christensen, especialista em inovações disruptivas, uma nova tecnologia para ser assimilada precisa ser fácil de usar, ser acessível e resolver um problema do dia a dia. E ainda para ser realmente disruptiva precisa ter alguma resistência. O ChatGPT é fácil de usar, gratuito (para funções básicas), resolve várias questões do cotidiano de educadores e enfrentou resistências de alguns. Portanto, o ChatGPT e outras ferramentas de inteligência artificial podem se configurar como inovações disruptivas em sala de aula e nas nossas vidas profissionais e pessoais.
A pergunta que educadores têm tentado responder é como essa nova tecnologia pode contribuir com a formação dos futuros médicos?
Tentando responder a esse desafio, o Centro de Desenvolvimento de Educação Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo tem utilizado o ChatGPT como estratégia educacional para a aquisição e desenvolvimento das competências gerais para a educação no século XXI: Comunicação, Colaboração, Crítica e Criatividade.
No que tange a competência de comunicação, o chat pode ser usado como um modelo de escrita clara e sintética, ajudar aqueles alunos com mais dificuldade a começar a construí-los. Além disso, oferece uma visão externa sobre o tema estudado e pode ainda gerar exemplos de interação médico-paciente, ou com a equipe de saúde.
A competência de colaboração pode ser aprimorada se alunos trabalharem em conjunto, um analisando o texto gerado pelo outro no chat, em um processo de “peer review” ou revisão por pares. E ainda juntos comparar os textos do Chat com os seus próprios textos, encontrando neles falhas, aprofundando informações, esclarecendo pontos, incluindo novas informações e ensinando uns aos outros, em um processo de aprendizagem colaborativa.
O ChatGPT pode ser uma potente ferramenta para desenvolver a visão crítica dos estudantes, responsabilidade e ética relativas à autoria científica, validação de fontes de informações e reafirmando o compromisso com a verdade.
Por fim, o bom desempenho do Chat está muito relacionado com a capacidade criativa de quem irá fazer a pergunta ou construir a demanda a ser respondida. Sendo essa uma forma de exercitar processos criativos. Além disso, aprimorar textos gerados pelo ChatGPT, melhorando o conteúdo, as conexões e encontrados falhas, exercita a criatividade dos nossos alunos.
Talvez você esteja se perguntando se o uso do ChatGPT estaria contribuindo com o desenvolvimento de competências, ou empobrecendo a nova geração, roubando deles e de nós mesmos a possibilidade de criação.
A resposta é não. Se bem utilizada, a ferramenta do ChatGPT pode ir além da complexidade do CRIAR como objetivo educacional de maior complexidade na taxonomia proposta por Benjamin Bloom em 1956 e revista por Lorin Anderson em 1999, propondo que seja incluído como objetivo o RECRIAR. Assim como o movimento artístico “readymade art” no qual a partir de mínimas modificações objetos comuns e funcionais são transformados em arte. A arte está no recriar. O ChatGPT nos oferece “readymade texts” que serão recriados pelos usuários, conferindo a eles verdade e sentido.
Além disso, o uso da inteligência artificial na formação médica pode ajudar a compreender os padrões de desenvolvimento de competências profissionais, descobrindo necessidades de aprendizagem e superando-as de forma efetiva com estratégias de ensino individualizadas em um processo de tutoria “just in time’. E ainda projetar simulações mais realísticas e de alta performance, melhorar a construção de testes para avaliação de conhecimento e produzir conhecimento significativo a partir de grandes bases de dados.
A formação médica e a prática do cuidado à saúde continuarão sendo praticadas por inteligências naturais com capacidade de análise para definir o uso e limites da inteligência artificial, que, certamente, não substituirá o humano. Mas humanos que saibam usar esse tipo de ferramentas com ética, responsabilidade e criatividade substituirão aqueles que não sabem na Medicina e em outras áreas.