O Boletim da Academia Brasileira de Pediatria (ABP) conversou com a Dra. Nubia Mendonça, Membro Emérito da cadeira nº 14 da ABP, que falou um pouco sobre sua vida, oportunidades na carreira e como ingressou na área de Oncologia Pediátrica. Confira a entrevista!
Nasci em Ilhéus, em 1944, de uma família tradicional da cidade. Tive uma mãe muito rigorosa. Na realidade, eu era uma menina alegre, feliz, muitíssimo amada e que teve uma educação muito rigorosa, e minha mãe prezava muito todos os bons valores de uma família e me passou isso junto com meu pai.
Então, eu tinha disciplina para tudo, eu acordava às 06h, mas eu tinha que estudar logo cedo piano e acordeon. Depois eu ia para a escola, voltava, almoçava, ia para a banca, voltava, ia para a aula de inglês e piano e, quando dava das 18h às 19h, eu brincava um pouquinho e ia dormir. Pronto. Então, foi uma infância dessa maneira, aos 10 anos, meu pediatra achou que eu estava estressada e minha mãe me levou para estudar no Rio, no Colégio Interno, Colégio Regina Celli, onde eu fiquei até os 12 anos. Mas, lá, ela também pagava à parte para eu fazer piano, acordeon e inglês. Então, foi a minha infância. Mas eu brincava, tinha minhas amigas, fazia cozinhado, que era como a gente chamava, enfim, coisas de criança normal.
Não tenho a mínima dúvida. O exemplo que eu recebi de meus pais, de união, de companheirismo, de honestidade, tudo isso, eles calcaram muito bem na minha cabeça. E foi com isso que eu cresci e sempre priorizei o estudo. Eu sempre priorizei o estudo, que estava sempre acima até da minha vida pessoal.
Minha mãe contava que desde quatro, cinco anos de idade eu dizia que seria médica. Ela sempre me disse isso desde pequena. E eu me lembro que com meus primos, eu tinha muitos primos e tenho muitos deles ainda, nós brincávamos de médico e paciente. De examinar, de dar injeção. As brincadeiras sempre tinham isso, mas na realidade, eu não tenho essa lembrança tão forte. Mas eu sei que, quando estava com 14 anos, ainda em Ilhéus, em que eu tinha que decidir entre fazer o curso científico e o clássico, naquela época era assim, minha mãe me levou até o colégio e na porta ela me disse: “Vá, escolha o que você quiser”. Eu entrei e disse: “Eu quero fazer científico”. Voltei para ela e disse: “Eu vou fazer Medicina”. Ela me disse: “Pronto! Agora, você, querendo ou não, vai ter que ser formar em Medicina”, e eu entrei em Medicina. Jamais me arrependi um dia sequer da minha vida. Eu acho que foi a carreira que estava traçada para mim.
Eu fiz Medicina na Escola Bahiana de Medicina em Salvador. E quando eu estava lá, eu não sabia o que faria. Honestamente, não sabia. Então, eu era muito boa aluna, era a primeira aluna de turma. Eu me dedicava muito a cada matéria, imaginando se eu teria uma afinidade. Os anos foram passando, quando eu estava no sexto ano de Medicina, em junho, faltando seis meses para me formar, eu fui a um Congresso Brasileiro de Pediatria, em Brasília, convidada por uma amiga que se tornou minha comadre, a Marli Piva. Ela era um ano mais adiantado do que eu. E, lá, eu conheci o professor Fernando da Nóbrega, que estava com sua equipe da Escola Paulista de Medicina. Entre esse grupo, tinha o Dr. Jamal Wehba e ficamos amigos. Conversávamos muito e ele falava muito de Pediatria. Ele era residente do terceiro ano, mas ele era enorme. E eu me lembro de uma cena em que ele pegava a mão e mostrava aquela mão grande, como se tivesse um recém-nascido deitado na mão dele, que foi uma coisa que me impressionou tanto. Isso foi em junho. No dia 3 de setembro, faltando exatamente três meses pra me formar, eu me formei em 3 de dezembro, eu acordei, botei o pé no chão e disse: “vou fazer Pediatria”. Então, o único responsável de eu ter feito Pediatria é o Dr. Jamal Wehba, e ele sabe disso.
O pronto-socorro pediátrico foi o primeiro lugar que eu trabalhei como médica. Quando eu voltei de São Paulo, a Delfina Vieira, que é pediatra e depois foi ser minha comadre, entrou de férias e me indicou para substituí-la. Eu já tinha trabalhado no pronto-socorro pediátrico quando estudante, porque eu admirava muito o Dr. José Américo Fontes e trabalhava no plantão dele e ficava encantada com a maneira de ele atender as crianças e as famílias. Então, eu fui para o Pronto-Socorro Pediátrico, e os sexto-anistas de Medicina passavam por lá fazendo estágio e eu comecei a discutir casos, dar aulas e fazer aquelas obrigações do internato com esses jovens que são meus amigos até hoje. E, então, foi aí que eu comecei a minha carreira acadêmica e vi que gostava daquilo. E foi um período muito bom. A gente só cuidava de criança pobre, né? E foi um período para mim de muito aprendizado, aprendizado de amizades, aprendizado de Medicina. Foi muito bom.
Bom, eu voltei para a Bahia em dezembro de 72 e, em abril de 73, o Dr. Jorge Bahia de Carvalho, que era o diretor o Hospital Martagão Gesteira, me convidou para trabalhar lá sendo preceptora de médicos residentes. Eu trabalharia no turno da tarde. Eu aceitei e fui para lá. No primeiro ano, só tinham quatro residentes. A partir daí, teve um número bem maior e eu tive que estudar muito porque o Martagão Gesteira era e ainda é um grande hospital pediátrico da Bahia. Recebia dezenas de ambulâncias por dia, trazendo crianças de todo o estado da Bahia, com todo tipo de patologia. E eu tinha que estar preparada para discutir com os médicos residentes e para poder orientá-los também.
E, isso de 73 a 76, eu via que chegavam crianças com câncer, porque nós olhávamos todas as crianças que tinham sido admitidas no dia anterior. E eu me impressionava com o número de crianças que chegava. Quem cuidava delas era o Dr. Roque Andrade, que é oncologista clínico. Eu dizia para os residentes para procurarem o Dr. Roque para que ele visse as crianças, para saber qual é o diagnóstico, como é que faz o diagnóstico, como é que trata, qual é o prognóstico. E o tempo foi passando. Eu cheguei a conhece-lo, mas sem ter intimidade. Até que um dia era o aniversário do Dr. Jorge Mário de Carvalho, em 1986, 6 de junho, nós estávamos na biblioteca fazendo um lanche e ele me disse: “Você não quer fazer Oncologia Pediátrica, não?”. Eu respondi: “Como é que eu vou fazer se eu não sei nada?”. Ele pediu ao Dr. Jorge que me liberasse três meses para fazer um estágio. O Dr. Jorge achou muito tempo, aceitou por dois meses. Fui para Buenos Aires, para o Hospital de Niños, onde eu tenho um grande amigo, o Dr. Luiz Beco, que era professor de Patologia. Então, a Oncologia Pediátrica caiu assim no meu colo e eu aceitei o desafio.
Eu ficava fascinada quando eu via aquelas crianças, quando como eles chegavam no hospital bem debilitados e, logo com o tratamento, eles já começavam a melhorar. Eu não tive uma grande formação na minha residência porque a gente recebia pacientes, mas não era naquela quantidade que tinha no Martagão. Eu via crianças com tumor abdominal, com leucemias e linfomas, mas eu não tinha estudo. Eu comecei a realmente estudar em Buenos Aires, que eu tive muita sorte, entre aspas, porque todos os médicos civis ficaram doentes, então fiquei sozinha atendendo falando portunhol. Mas foi bom. Eu aprendi muito com isso. Muito. Quando eu voltei, Roque entregou o serviço e o Dr. Jorge me colocou como chefe de serviço. E aí nós tocamos o Centro de Oncologia Infantil do Hospital Martagão Gesteira. Então, muito me orgulho.
Sim, em Buenos Aires, eu fiz dois meses, então eu passei a ser chefe de serviço com muito pouco tempo de estudo, mas existia o Hospital Gustavo Rossi, é o maior centro de câncer da Europa, fica na cidade de Genevieve, que é vizinha a Paris e que tinha o maior serviço de Oncologia Pediátrica da Europa. Era chefiado pela doutora Odile Schweisguth, que foi a fundadora da Oncologia Pediátrica na Europa, e o cunhado, Dr. Jorge, era o ministro da Saúde. Então, eu me candidatei a uma bolsa e consegui essa bolsa no Gustavo Rossi. Eu era paga pelo governo francês e eu fiquei um ano. Aí é que realmente eu fui fazer a especialização. Foi um período extraordinário porque o serviço era imenso, tinha todo tipo de paciente e tinha a discussão de casos diariamente, visita de enfermaria, de ambulatório e quando eu ficava lá até tarde, o professor era o último a sair e eu saía junto com ele. Então, foi um ano maravilhoso. A partir daí é que realmente eu achei que já estava mais preparada para ser oncologista pediátrica. Foi um ano fantástico, maravilhoso, e de muito aprendizado.
Para o mesmo Centro de Oncologia Infantil do Hospital Martagão Gesteira. É claro que já com outra bagagem. Mas eu sempre tive muito apoio do Dr. Jorge na condução, e nós tínhamos o maior serviço do Norte-Nordeste, o Martagão era o que mais recebia casos e quem mais registrava casos nos grupos cooperativos que já estavam sendo formados. A Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica foi fundada em 1988, então já tínhamos grupos cooperativos e nós éramos quem mais encaminhávamos pacientes aqui de cima do Brasil para cadastro.
Eu também fui convidada, quando eu voltei para cá, pra entrar na Associação Baiana de Medicina (ABM) para fazer parte da diretoria. Mas eu não era uma pessoa conhecida na Bahia, pois, assim que me formei, fui pra São Paulo. Então, eu já comecei o meu lado associativo já com a ABM, que sempre foi conduzida por profissionais, professores, pessoas que gostavam muito daquele tipo de movimento. Tive esse exemplo. Nós íamos por todo o interior da Bahia dando aulas, e aí foi o meu primeiro contato em termos de uma associação de classe. Eu me inscrevi na Sociedade Brasileira de Pediatria e aos pouquinhos eu ia sendo conhecida. Depois, vários presidentes da Sociedade Brasileira de Pediatria me convidaram pra fazer parte dos departamentos e a presidi-los, principalmente de Onco-Hematologia.
O Dr. Nelson Barroso me convidou para ser presidente da Sociedade Baiana de Pediatria. Naquela época, eu fui chapa única, tinha que ganhar, e fui presidente durante dois anos e, ao mesmo tempo, tendo sempre esse cargo de presidente de departamento na SBP. Eu gosto muito de estar perto de outras pessoas, de estar perto de outros pediatras. Era a maneira como eu tinha de conhecer gente. Eu conheci gente do Brasil inteiro graças a esses movimentos, porque aí eu era convidada para dar aula, dei aula do Amazonas até o Rio Grande do Sul. Então, cada vez eu ia fazendo mais amizades. Sempre gostei de movimento associativo. Para dizer a verdade, eu não gostava. Eu nunca me meti em sindicato, sendo honesta, mas a associação de classe eu sempre gostei.
Eu sempre fui muito ligada à Sociedade Brasileira de Pediatria e, quando se pensou em formar o que era o chamado Conselho Acadêmico, eu fui. Dr. Nelson Barbosa de novo me indicou. Na época, eram todos aqueles presidentes de sociedade que escolhiam, e era a primeira turma do Conselho Acadêmico. Eu fui aceita e entrei, logo eu sou acadêmica desde a primeira gestão.
A Academia Brasileira de Pediatria passou depois a ter esse nome, e eu continuo meu trabalho muito satisfeita porque temos tido grandes presidentes. Meu querido Mário Santoro, meu querido Jefferson Piva, que são extremamente dedicados e que têm dado um tom muito seguro e muito adequado para as nossas funções.
Nós não temos nenhuma ingerência na Sociedade Brasileira de Pediatria. A Sociedade Brasileira de Pediatria tem a sua diretoria, mas eu acho que os acadêmicos são modelos para esses mais jovens. Quando eu digo modelos é porque quando a gente vai ficando mais velho, todo mundo vai botando de escanteio. E ali na Academia você tem alguns dos melhores professores do Brasil, pessoas com quem você pode se aconselhar, que você pode pedir opiniões.
E nós fazemos um Fórum quando tem o Congresso Brasileiro de Pediatria, mas é um fórum, digamos assim, que não vai só falar de Pediatria. A gente vai falar de todo o contexto da criança, da família, da sociedade. Então, eu acho que a gente ainda tem muita coisa a repassar para essas gerações mais jovens que estão vivendo um momento difícil, com tantas escolas médicas no Brasil, formações diferentes.
Eu acho que que esses acadêmicos são exemplos para toda essa plêiade de pediatras que tem pelo Brasil.
Toda vez que eu falo de um prêmio, eu me lembro do professor Nelson Barros, que foi meu chefe quando eu fui professora na Faculdade de Medicina da Bahia. Ele dizia: “Honrarias, a gente não pede, mas não recusa”. Nunca me esqueço dele. Não é que eu ache que eu mereça ou não mereça prêmios. Eu acho que eu fiz o meu papel, o papel que eu me dispus, o papel que jurei em 3 de dezembro de 1968. Eu jurei ser uma boa médica, então eu não precisaria ser premiada. Mas sou. Semana que vem vou receber outro prêmio aqui em Salvador.
Agora mesmo, a Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica está fazendo um almanaque com as mulheres líderes no mundo. Eu sou a única pessoa médica da América Latina. Não sei como eles me escolheram, então eu aceito. Mas eu acho que não teria necessidade porque eu não fiz mais do que a minha obrigação de médica.
É isso mesmo. Eu sou de uma família de mulheres fantásticas na cozinha. Mas lembre-se o que falei da minha infância, eu só tinha tempo de estudar. Eu me lembro da primeira vez que minha mãe disse que eu ia catar a galinha, quando vi a galinha morta, eu quase desmaiei na cozinha. Mas eu gosto muito de comer. Eu digo todo dia que eu sou gulosa. E gosto de comer bem. E sempre comi bem na minha casa. Eu me aposentei e minha sobrinha morava em Aracaju. Eu resolvi morar lá com minha irmã. Mas lá eu não tinha o que fazer, pois já estava aposentada. Tinha um curso na Faculdade de Gastronomia da Unit e resolvi fazer. Foi uma coisa fantástica porque eu sou curiosa, então eu também me dediquei muito, estudei muito, mas não sou boa cozinheira. Minha irmã diz que sou péssima, mas não sou péssima, sou mais ou menos.
Mas eu gostei muito, porque eu estudei muito, estudei gastronomia do mundo inteiro. A gente tinha matéria de cozinha nordestina, cozinha brasileira, cozinha latino-americana, cozinha europeia, cozinha asiática. E, como eu sou curiosa, eu também fui uma boa aluna, me formei depois disso, ainda fiz uma pós-graduação, achando que era pouco. Nunca me queimei, nunca me cortei, mas gosto.
E hoje em dia eu cozinho um pouco, eu ainda cozinho, eu cozinho só para mim, mas gosto muito de gastronomia. Agora, eu gosto mesmo é de comer.
Quando eu fui fazer Pediatria na Cruz Vermelha, na Emergência, tinha uma placa escrito assim “Pediatria é, antes de tudo, amor”. E nós tínhamos um preceptor que olhava pra placa e dizia: “que saco”.
Primeiro, você tem que amar a criança e o adolescente, a Pediatria vai até 19 anos, e você tem que saber escutar. Você tem que ter paciência com os pais, principalmente, ou mais com as mães, que são angustiadas quando veem seu filho com febre, com tosse, ficam desesperadas. Então, se você quer ser um pediatra, primeiro você tem que ser um bom pediatra. Eu não gosto quando a pessoa está ainda estudando, diz assim: “Eu vou fazer Nefrologia Pediátrica”, não, vamos fazer Pediatria. Não pense que vai ganhar dinheiro. Pediatra ganha consulta. Então, precisa estudar, saber ouvir e saber olhar para a criança e perceber que a criança não mente. E tem gente que diz que que meus pacientes me enganavam, mas não me enganavam, não, porque eu sempre disse que eu nunca duvidei da palavra de uma criança. O adulto mente, diz que está com isso, com aquilo, aquilo outro, até quando quer licença. Mas criança não mente não. Você olha para a criança, você sabe se a criança está chorando de dengo, se está chorando de birra, se está chorando de dor. Você consegue, com sinais que a criança está dando, perceber se é uma criança que realmente que está em sofrimento ou não. Agora tenha paciência realmente para escutar os pais.
Eu fui pediatra por oito anos, depois é que veio a Oncologia Pediátrica. Então, o que eu posso dizer aos jovens é o seguinte: vá fazer Pediatria se você tiver amor à criança, amor aos pais. E também não pense em ficar rico. Eu acho que são os dois conselhos que eu posso dar. Pediatria é o máximo, pode ter certeza que é. Não tenha dúvida.