Prof. José Roberto Goldim
Biólogo, Doutor em Medicina, Consultor e Professor de Bioética
A pesquisa em crianças é uma longa história e bastante controversa. Ela parte de uma situação de realizar estudos, sem qualquer cuidado com o reconhecimento das crianças como pessoas, até o outro extremo, gerando o impedimento de sua participação em qualquer pesquisa, a título de proteção. É possível resgatar alguns exemplos históricos, que podem ser entendidos como abusivos, como discutíveis, ou, ainda, como adequados. Esta avaliação depende da situação e das circunstâncias em que ocorreram estas pesquisas.
O teste da vacina para a varíola humana, feito por Edward Jenner, em 1796, foi realizado no menino James Phipps, então com oito anos, que era filho do jardineiro. Ele foi inoculado com material biológico proveniente de uma mulher que ordenhava vacas leiteiras, que já tinha contraído a varíola bovina. Seis semanas após, o menino foi inoculado, por duas vezes, com material biológico capaz de provocar a varíola humana. O menino não desenvolveu qualquer sinal relacionado à doença. Posteriormente, foi inoculado por mais 20 vezes. Ao longo destes experimentos, não teve qualquer indício da doença. Havia uma importante vulnerabilidade social associada à escolha do menino. É dos primeiros registros de um experimento de desafio humano, ou seja, provocar deliberadamente uma doença para verificar a efetividade da imunidade previamente induzida. Estes experimentos, até hoje, são considerados como discutíveis desde o ponto de vista ético.
Por outro lado, em 1885, Louis Pasteur, que não era médico, testou a sua vacina antirrábica no menino Joseph Meister, então com nove anos. Este menino havia sido mordido, várias vezes, por um cão contaminado. Pasteur já havia desenvolvido esta vacina, em conjunto com Emile Roux, para tratamento da raiva humana, testada previamente apenas em animais. O menino foi tratado, sobreviveu e trabalhou com Pasteur por muitos anos. Esta situação poderia ser caracterizada, nos dias atuais, como um uso compassivo. O objetivo desta intervenção foi tratar um paciente, estado de grande necessidade e risco de vida, utilizando um método ainda experimental, não validado para uso assistencial, em uma situação na qual não havia qualquer terapêutica comprovada disponível.
Porém, o caso que mais despertou desconforto ocorreu em 1891. Carl Janson, em uma palestra na Sociedade de Médicos Suecos, divulgou os resultados de suas pesquisas com vacinas de varíola. Nesta comunicação, informou que este estudo foi realizado com 14 crianças órfãs, com a autorização do médico encarregado pela instituição. Logo após, se desculpou à plateia, por não ter utilizado bezerros, que seriam o melhor modelo, pois estes eram muito caros e a sua manutenção também era muito custosa. Ele afirmou, ainda, que tinha planos de dar continuidade às suas pesquisas envolvendo crianças institucionalizadas. Mais do que a inadequação da pesquisa em si, o que causou, e continua causando, enorme desconforto foi a desconsideração, a exploração destas múltiplas vulnerabilidades por um pesquisador e pelo médico responsável pelas crianças.
A divulgação destes relatos abusivos, especialmente os de Jenner e de Janson, gerou discussões em muitos países, especialmente nos Estados Unidos e na Alemanha. O senador Jacob H. Gallinger, em 1900, elaborou um projeto de lei para regulamentar os Experimentos Científicos em Seres Humanos, nos Estados Unidos. Esta Lei, que não foi aprovada, estabelecia, entre outras questões, a proibição da participação em pesquisas de pessoas com menos de 20 anos de idade. Esta proibição tinha como fundamento o princípio da beneficência, ou seja, excluir para proteger.
Quase no mesmo período, na Prússia, em 1901, foi aprovada a primeira norma sobre investigações científicas em humanos. Neste texto, a pesquisa em crianças também foi explicitamente proibida. Posteriormente, em 1931, quando a Alemanha já estava unificada, este texto foi publicado na forma de uma lei federal para regular as atividades de pesquisas em seres humanos. Este documento propôs especial atenção quanto ao uso de novas terapêuticas em menores de idade. Caso houvesse risco associado à pesquisa, a lei impedia a participação de crianças. Da simples exclusão, houve um deslocamento para uma eventual utilidade associada à participação na pesquisa, com foco no risco associado.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1947, o Código de Nuremberg estabelecia, em seu artigo primeiro, que a condição essencial para a realização de pesquisas em seres humanos era a obtenção de um consentimento voluntário de cada um dos participantes, que deveriam ser pessoas legalmente capazes. Desta forma, as crianças estavam impedidas de participar devido a sua incapacidade legal.
Esta situação evoluiu na Declaração de Helsinki, proposta pela Associação Médica Mundial, em 1964. Estas normas morais permitiam a realização de pesquisas em crianças, desde que houvesse o consentimento dos seus responsáveis legais. Ou seja, a incapacidade legal dos menores seria suprida pela representação de seus pais, por exemplo. Eles tomariam a decisão de autorizar ou não a participação das crianças após terem sido devidamente informados sobre as características da pesquisa.
Em 1988, as Normas de Pesquisa em Saúde (Resolução CNS 01/1988), do Conselho Nacional de Saúde, foram mais além ao incluir a participação das crianças no processo de obtenção do consentimento, na medida em que tivessem condições de compreensão, sem prejuízo ao consentimento dos representantes legais. A inclusão das crianças reconheceu, com base em uma justificativa ética, a capacidade para consentir das crianças, ainda que sem reconhecimento legal. O aspecto legal da autorização foi mantido com a autorização dos responsáveis legais.
Pouco depois, as Diretrizes Internacionais do CIOMS, órgão conjunto da OMS e da UNESCO, de 1993, avançaram ainda mais na questão da pesquisa em crianças. A garantia da participação dos menores no processo de consentimento foi ampliada ao estabelecer que a recusa da criança deveria ser sempre respeitada. A única exceção admitida, quando a vontade dos representantes legais poderia ser soberana, seria quando a terapia experimental fosse a única alternativa disponível de tratamento. Esta proposta fez um balanço entre o empoderamento das crianças no processo de consentimento, ao permitir a recusa, com a possibilidade de benefício.
Posteriormente, diferentes organizações e países elaboraram declarações, recomendações e leis específicas com propostas de participação das crianças em pesquisas. Todos estes documentos utilizaram esses diferentes referenciais de adequação ética, moral e legal.
Mesmo com todas estas mudanças, que flexibilizaram a participação de crianças em projetos de pesquisa, a realização de projetos nesta faixa etária ainda é baixa. Na base Clinical Trials, apenas 3,6% dos projetos registrados se relacionam a pesquisas em crianças, com dados de maio de 2023.
A proteção exclusora, vigente por muitos anos, é ainda utilizada como justificativa para a não realização de pesquisas. Esta perspectiva teve resultados bastante preocupantes na assistência pediátrica. Em 1999, estimava-se que cerca de 50% dos medicamentos prescritos para uso pediátrico nos Estados Unidos não tinham sido aprovados para tal utilização.
O temor associado à realização de pesquisas deve ser adequadamente entendido. Os projetos de pesquisa, quando bem planejados e realizados, expõem um número reduzido de participantes a situações nas quais a equipe de pesquisadores está continuamente monitorando e acompanhando os efeitos das intervenções. A prática clínica, realizada sem evidências geradas por pesquisas, pode colocar em risco um número muito maior de crianças, em função da incerteza associada aos procedimentos e substâncias utilizadas.
A avaliação da adequação ética do projeto passa pela reflexão sobre alguns pontos relevantes, como o respeito à dignidade humana, à liberdade, à integridade e ao reconhecimento da vulnerabilidade dos participantes, especialmente quando são crianças.
O princípio da dignidade é o que nos une a todos, é o que nos iguala, independentemente da idade, sexo, gênero, discernimento, ou outras características. Todas as pessoas são dignas. Este é o ponto inicial de toda e qualquer reflexão ética, inclusive para a adequação das pesquisas em crianças.
Garantir a liberdade é permitir que as pessoas façam as suas escolhas, reconhecendo a autonomia, entendida como capacidade, e a sua autodeterminação, como ação associada à sua vontade. A capacidade para decidir não é um evento tudo-ou-nada, é um contínuo. Existem inúmeros estudos que demonstram a progressiva capacidade psicológica e moral de crianças. Em muitas situações esta capacidade pode ser adequada para tomar decisões, em outras não. O ritmo do desenvolvimento é individual, e assim cada pessoa deve ser avaliada em sua singularidade. A questão é verificar se o grau de capacidade de cada criança é adequado ao processo de consentimento envolvido.
Nas atividades de pesquisa, o pesquisador oferece a possibilidade para alguém participar ou não de um projeto. Na assistência, por outro lado, é o paciente que busca atendimento com base em uma necessidade que é apresentada e avaliada pelo profissional de saúde. Na pesquisa clínica existe uma combinação entre a necessidade assistencial e a possibilidade de participar ou não de uma pesquisa. Esta combinação exige que o processo de consentimento seja realizado com muito mais cuidado e atenção.
Dar um consentimento é um ato personalíssimo, ou seja, apenas a própria pessoa pode dar ou não um consentimento válido. A denominação assentimento, que é muito utilizada para o consentimento das crianças, traz consigo uma mensagem ambígua. O consentimento expressa a liberdade de assentir, ou concordar, e de dissentir, ou discordar, com a proposta realizada. Ao propor que as crianças podem apenas dar um assentimento, pode ser entendido que elas podem apenas concordar, mas que a sua recusa não será levada em conta na decisão final que as envolve. A valorização da recusa das crianças, já proposta em 1993, ainda está necessitando de maior discussão ética, moral e legal. Seria importante caracterizar e denominar que os pais ou representantes legais, dão uma autorização por representação, que supre os aspectos legais associados.
A integridade das crianças é outro ponto fundamental a ser discutido e preservado. A integridade deve ser entendida no seu sentido mais amplo, passando pelos aspectos físicos, mentais e sociais. A discussão da integridade passa pela adequada avaliação dos riscos e benefícios associados às intervenções de pesquisa. Os riscos e os benefícios são sempre expressos por probabilidades, são possibilidades. É uma das tarefas mais difíceis de serem realizadas quando do planejamento de um projeto. Os riscos e benefícios se baseiam em conhecimentos previamente divulgados. Quanto menos conhecimento é gerado, maior é a incerteza associada. O importante é associar a geração de novos conhecimentos com a segurança associada à realização das pesquisas.
Por fim, a vulnerabilidade surge quando a dignidade, a liberdade ou a integridade estão ameaçadas. Qualquer abalo nestas três outras características – dignidade, liberdade e integridade – geram potencialmente situações de desigualdade de algumas pessoas frente às demais. O reconhecimento de uma situação de vulnerabilidade implica no estabelecimento de medidas de proteção adicionais para estas pessoas. Um exemplo disto é a própria Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabeleceu proteção adicional para os dados pessoais sensíveis das crianças. Porém, esta mesma LGPD não impede a realização de pesquisas com estas informações, ao contrário dá garantias de adequação para que este acesso seja feito com segurança. O princípio da precaução deve orientar estas medidas. Se existir a possibilidade de que um risco ocorra em qualquer destas dimensões, é fundamental estabelecer medidas de contingência associadas. Reconhecer vulnerabilidade não é excluir, mas sim proteger. A simples exclusão tem o potencial de aumentar ainda mais a própria vulnerabilidade antes reconhecida.
Vulnerabilidade não deve ser entendida apenas como uma característica estática, como um atributo dado a todas as pessoas que tenham uma dada característica, como as crianças, por exemplo. A vulnerabilidade também é dinâmica, pode ocorrer com qualquer pessoa, independentemente de uma característica reconhecida, mas é decorrente da situação e das circunstâncias que estão envolvidas. Esta é a perspectiva contemporânea para o reconhecimento da vulnerabilidade.
Finalizando, a pesquisa em crianças é um grande desafio para todos os envolvidos, sejam crianças, pesquisadores, pediatras ou outros profissionais da saúde, pais ou responsáveis legais, instituições, membros de Comitês de Ética em Pesquisa, Sociedades Médicas, legisladores, ou seja, para toda a sociedade. O importante é refletir – pensar de forma abrangente – sobre a adequação das pesquisas realizadas em crianças em termos dos aspectos biológicos e biográficos associados de cada um dos participantes, assim como do potencial de geração e aplicação destes conhecimentos. É uma tarefa importante e necessária para todos.