O Boletim da Academia Brasileira de Pediatria conversou com
Dr. Álvaro de Lima Machado
Membro Emérito da Cadeira n. 22 da Sociedade Brasileira de Pediatria
Nesta edição, o Boletim da ABP entrevistou o acadêmico Álvaro de Lima Machado, que contou sua trajetória no magistério, carrei- ra médica, vida familiar e muito mais. Confira:
Doutor Álvaro, gostaríamos de começar nossa conversa, que será compartilhada com milhares de pediatras, perguntando: como foi a infância do menino Álvaro de Lima Machado?
Bom, posso dizer que foi bem diferente da que seria hoje. Mas uma característica minha, pessoal, é a curiosidade. Eu sempre tive vontade de aprender as coisas, mesmo quando me explicavam, eu ainda sempre achei necessário saber um pouco mais. Por isso, eu sempre me sentia atraído por ciência. Naquela época, eu não tinha nenhum interesse em Medicina nem em outra profissão específica, mas qualquer coisa que desafiasse minha curiosidade, esse era objeto de interesse. Então, enquanto criança, foi essa a minha característica. Não tinha nenhuma ideia do que eu seria no futuro. Médico, engenheiro... e até pensei em ser engenheiro exatamente porque achava muito desafiante. Na época, estavam construindo as primeiras grandes barragens aqui no Brasil, e havia um interesse grande pelas obras de engenharia. Fiquei interessado, mas parou por aí.
O menino Álvaro teve irmãos?
Tive dois, já falecidos.
O que despertou nesse menino o desejo de ser médico? E como foi a escolha da Pediatria?
O desejo de ser médico já foi por uma questão pessoal e muito triste porque minha mãe teve câncer numa época que não tinha os recursos de hoje. Então, foi um sofrimento imenso durante anos acompanhá-la fazendo cirurgias grandes e tratamentos que hoje a gente sabe que não tinham grande efeito. Naquela época, assim como ainda hoje, sugeriam tratamentos mirabolantes, teorias absurdas a respeito de câncer.
Então, aquilo dali me machucou muito, eu posso dizer. E ainda machuca. E me deu uma má impressão. E surgiu o desejo de fazer Medicina um pouco mais científica do que a gente fazia na época, pois havia muito palpite que não tinha estrutura. Eu acho que nasceu daí, principalmente, o meu desejo de ser médico.
Em relação à Pediatria, já é mais fácil eu dizer até porque é mais perto. Quando trabalhei como estudante no Rio de Janeiro, no pronto-socorro, observei que dificilmente os acadêmicos e médicos atendiam crianças. Normalmente, faziam um atendimento mui- to sumário e mandavam para outro hospital particular, ou o Hospital da Previdência ou da Prefeitura. E não era um atendimento muito bom, no meu modo de ver.
Eu passei, então, a estudar por conta própria, nos livros que a gente dispunha na época, a Pediatria, os casos mais frequentes de pronto-socorro e, a partir daí, eu tomei um interesse grande pela especialidade. No quarto, quinto ano de Medicina, eu trabalhei no serviço de cirurgia de excelente qualidade no Rio de Janeiro, e me deu a ideia de fazer cirurgia pediátrica.
Na época, era uma especialidade praticamente desconhecida. Só havia um médico em São Paulo que tinha essa especialidade e um lá no Rio que se dizia especialista. Os outros eram cirurgiões gerais que também atendiam crianças. Então, com essa ideia de fazer cirurgia pediátrica, fiz o treinamento pós-graduado nos Estados Unidos, internato e residência. Eu mudei de ideia definitivamente da parte cirúrgica para a parte clínica e passei a fazer então a residência de Pediatria. E, embora eu não tivesse terminado o treinamento por algumas questões, voltei para fazer Pediatria. De modo que, aqui no Brasil, depois de formado, eu praticamente só exerci Pediatria, embora não tivesse tido previamente uma formação pediátrica acadêmica.
O que pode nos contar sobre sua trajetória no magistério?
Não considero que fui um grande ou bom professor. Primeira- mente, porque não era realmente o que eu mais gostava na Me- dicina. Achava que não era o meu desejo, mas uma obrigação da posição em que estava partilhar a experiência e o conhecimento que tivesse com os outros. E foi a coisa que mais gostei na profissão. Devo muito por ter sido professor da Universidade Federal do Espírito Santo. Os colegas eram excelentes, com eles aprendi muito. A vantagem de ser professor é que aprendemos muito mais do que ensinamos. Então, sou grato por tudo isso. Mas realmente não acho que foi a parte dominante na minha vida profissional.
E qual seria essa parte dominante? O que te fascina, fez e ain- da faz brilhar os olhos com relação à prática da Pediatria?
Sempre foi a clínica médica, o lado do paciente. Eu gostava muito da parte prática nas aulas, mas a parte de exercer a Medicina, de examinar, de pegar uma história, de acompanhar um tratamento etc., isso daí sempre foi o que me interessou mais. E não particularmente a de urgência. Eu faço a urgência porque é obrigatória na vida profissional e não se pode recusar. Trabalhei com gosto em serviço de urgência. Mas eu ainda preferia a tranquilidade, pelo menos para mim, da clínica ao lado do leito e do consultório.
E sobre o movimento associativo? As entidades médicas? Fale-nos de sua experiência, por favor.
Bom, quando eu cheguei a Vitória, no Espírito Santo, havia poucos médicos em várias especialidades. A Sociedade de Pediatria tinha um representante aqui, o professor Martins, mas não havia sociedade de pediatria local ainda. Algum tempo depois, chegou o professor Azor de Lima, do Rio de Janeiro, ele incentivou a criação da Sociedade Espírito-Santense de Pediatria (SOESPE) e fui um dos que tomou parte como fundador.
Mas não fiquei só na SOESPE, assim como os outros colegas de outras especialidades, pois eram poucos e necessitava-se de um certo número para formar uma sociedade de especialidade. Então, eu também sou fundador da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Espírito Santo, da qual, aliás, eu nunca participei, a não ser por nome. Basicamente, na Sociedade de Pediatria, eu cheguei a ser secretário, presidente, mas depois vão chegando os mais novos, a gente vai recuando um pouco.
Como o senhor vê o papel da Academia Bra- sileira de Pediatria (ABP)?
Primeiro, a minha ida para a Academia foi uma inteira surpresa porque entre nós havia um pediatra que foi o grande vulto da pediatria espírito-santense, o Professor João Henrique Martins. E, certamente, era ele a pessoa indicada para ser acadêmico. Mas ele estava muito doente e não tinha condição de assumir a responsabilidade da Academia.
Então, os colegas me indicaram, principalmente os da SOESPE, para a Academia. Quan- do eu era estudante, ouvi um professor dizer o seguinte: “há honras que são tão grandes que não temos o direito de recusar porque parece que queremos diminuir o julgamento daqueles disseram que a gente era bom”.
Bom, não sei. O fato é que eu aceitei a Academia e fui um dos primeiros do grupo. Em minha opinião, a Sociedade de Pediatria tem o foco na parte técnica, administrativa, da profissão e tudo mais. Mas a Academia tem um papel importante porque reúne aqueles que já têm uma vasta experiência nos mais di- versos campos pois, para ser membro da Academia, você pode ter ocupado o espaço tanto no ensino como na sociedade, como na prática clínica, na pesquisa etc. Então, enquanto a Sociedade de Pediatria representa e defende os interesses dos médicos, seus pacientes e familiares, a Academia tem a preocupação de promover a reflexão de temas pertinentes da especialidade, fazendo o elo entre a classe médica e o público em geral.
Então, dá uma visão muito geral da Pediatria no ambiente relativamente restrito de colegas que já têm um tempo grande de profissão. É realmente um ponto de apoio para a Sociedade Brasileira de Pediatria.
Como foi conciliar, ao longo de sua carreira, a sua vida familiar com a vida profissional?
Não é fácil. A gente fica entre dois mundos e, muitas vezes, não tem muito o que se fazer. Há um provérbio americano que diz: “Você não pode fazer omelete sem quebrar ovos”. Então, há de haver determinadas situações em que a gente sabe que não é a melhor solução. De alguma maneira, de um lado ou do outro, vai pesar. O trabalho foi muito pesado, morávamos, e ainda moramos, muito longe. A família ficava completamente sozinha durante um tempo até que eu voltasse. Muito plantão, muita aula, hospital. Eu sempre procurei, acredito, fazer o melhor possível, estar com os meninos, com minha esposa o maior tempo possível. Mas sei que não foi o ideal.
Qual conselho ou mensagem daria aos jovens médicos que pensam em fazer residência em Pediatria?
A opinião de um velho colega é o seguinte: não se pode pensar somente na parte técnica da Medicina. Infelizmente, a gente vê uma preocupação muito grande com o mercado de trabalho, com condições ótimas de exercício da Medicina, materiais, mas é mais do que isso. A pessoa tem que gostar. Se não gosta de fazer exame, se não tiver uma certa ligação com o paciente, é muito difícil. Por isso, que eu sempre gostei da clínica particular. Não é pela remuneração. É por outra razão. Porque se o paciente não gostar da consulta comigo, ele vai para outro, pode pagar para outro.
Diferentemente do paciente que está no serviço público, que não tem escolha. Para esse, então, é necessário absolutamente que a pessoa tenha piedade, tenha consideração pela situação em que ele está. Nesse aspecto de vida pelo menos, nada me pesa na consciência. Enquanto eu pude, sempre levei em con- sideração o bem-estar do paciente. Às vezes, a gente tem que sacrificar, como eu disse, a família, lazer, mas, enfim, essa é a profissão que a gente quer e a que se propôs
Eu ficava muito triste quando via alunos que estavam sob a minha supervisão no estágio ultimamente; eles não queriam fazer história, faziam um resumo aquém do esperado em uma anamnese sobre o que o paciente sentia, se confundiam, descreviam um rol de sintomas com uma história clínica e não gostavam de realizar o exame físico porque a criança chora, grita, não se cuida. E ressalto: se for assim dessa forma, não se deve fazer Pedi- atria. Se ele não gosta das coisas que um paciente faz, é melhor escolher outra profissão.