Memória

O nascimento do Estatuto da Criança e do Adolescente

Prof. Dr. Mário Santoro Júnior
Membro Titular da Cadeira nº 28 da Academia Brasileira de Pediatria

A década de 1980 representou um período de grandes mudanças no Brasil: a abertura política, gerou um novo ordenamento jurídico.  A população foi chamada a participar dos destinos do Estado em vários setores, com surgimento de novas organizações sociais e o fortalecimento do papel das existentes.

Assim como outras entidades médicas, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tinha foco nos assuntos médicos, e apenas tangenciava aspectos psicossociais. Foi nessa época que a Sociedade assumiu formalmente que as questões dos direitos das crianças e dos adolescentes são de importância fundamental para que atinjam seu total potencial de desenvolvimento físico e mental, em consonância com a definição de saúde de 1947, da Organização Mundial da Saúde (OMS). Seu então presidente, o Prof. Antônio Márcio Junqueira Lisboa, propôs à Assembleia do Conselho Superior a criação do Comitê de Direitos da Criança e do Adolescente da Sociedade, aprovado por unanimidade, transformando-se mais tarde em um dos Departamentos da SBP.

A ONU estabelecia que o direito da população infantojuvenil decorre dos direitos humanos e estes se referem a tudo que é necessário para a pessoa ter ou ser capaz de fazer para sobreviver, prosperar e alcançar todo seu potencial de desenvolvimento. Essas primícias foram fundamentais na formulação da Declaração dos Direitos Humanos (1948), ratificada pelo Brasil e inúmeros outros países. Em 1959, a ONU aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, elencando dez princípios a serem seguidos em defesa da infância. Essa Declaração foi a base para a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 1989.



A Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal: foi ratificado por 196 países, incluindo o Brasil, que foi representado naquela Assembleia pelo seu Presidente à época, Fernando Collor de Melo.


Essa Convenção reconheceu as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos que necessitam de cuidados especiais por estarem em peculiar condição de desenvolvimento, e cuja proteção é prioritária e de obrigação de respeito e cuidado por sua família, pela sociedade e pelo Estado, os quais devem tomar decisões em favor do seu maior interesse e garantindo a sua voz.

Do Código de Menores à Doutrina de Proteção Integral

Desde 1927, estava em vigência o Código de Menores cuja base teórica era a doutrina da situação irregular do menor (termo associado aos pertencentes a classes sociais inferiores).

Os ideais impulsionados pela abertura política da sociedade, que deslumbrava o que viria a ser a Convenção Universal dos Direitos da Criança e do Adolescentes, caminhava no sentido de que a nova Carta Magna, a ser aprovada pela Assembleia Constituinte, adotasse como regramento jurídico para a infância e adolescência a Doutrina da Proteção Integral. Com essa Doutrina, a ideia era que crianças e adolescentes deixassem de ser objetos de intervenção para serem compreendidos como sujeitos de direitos, garantindo igualdade de direitos a todos.

Essas ideias não tinham aceitação unânime, e encontraram em alguns meios jurídicos forte resistência, gerando muitos debates em congressos, seminários e conferências.

Aproveitando o momento, organizações voltadas à infância, a exemplo da SBP, por intermédio de seu Comitê de Direitos da Criança e do Adolescente, e o Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), começaram um conclame de toda a sociedade em prol da “Emenda da Criança, Prioridade Nacional”. Crianças e adolescentes tomaram conta do Congresso Nacional para entregar aos congressistas documento com mais de um milhão de assinaturas. Nele, era solicitada a inclusão de um artigo na Constituição que estabelecesse a doutrina de proteção integral às crianças e aos adolescentes como prioridade nacional. Os Constituintes aprovaram, por unanimidade, o artigo 227 que reza: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência”. Esse artigo exigia uma Lei Federal para sua regulamentação. Por acordo das lideranças partidárias, a revisão desse projeto de lei foi feita pelas entidades representativas de seus setores, cabendo à SBP a revisão dos tópicos referentes a área da saúde.

Assim, em 13 de julho de 1990, a Assembleia Constituinte aprovou a Lei 8069 que viria ser conhecida como ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA, que garante à criança e aos adolescentes todos os direitos necessários ao seu pleno desenvolvimento pessoal, social, a sua integridade física, psicológica e moral, além de proibir toda forma de negligência, violência e maus tratos. O ECA incorpora tudo que de mais avançado havia no que viria a ser a Convenção dos Direitos a Criança e do Adolescente, aprovada pela ONU em 20 de novembro de 1989 e entrada em vigor em 02 de setembro de 1990, portanto após o Brasil já ter aprovado o ECA.

Fonte da foto: https://prioridadeabsoluta.org.br/noticias/especial-eca-30-anos/

Referências bibliográficas

  • Poder Judiciário de Santa Catarina. A construção do ECA. Disponível em ttps://www.tjsc.jus.br/web/infancia-e-juventude/coordenadoria-estadual-da-infancia-e-da-juventude/campanhas/eca-30 anos/construcao-historica-do-estatuto. Acessado em 01/09/2022
  • Viera AL, Pini F, Abeu J. (organizadoras). Salvar o estatuto da Criança e do Adolescente. 1ª Ed. São Paulo: Instituto Paulo Freire.2015, 1932 Kb, PDF.
  • BRASIL. Lei 8069de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União de 16 de julho de 1990