Se muitos adultos já têm medo de dentista, é possível imaginar como a criança, que precisa ir a um consultório com instrumentos e barulhos desconhecidos, se sente. Por isso, lidar com a Odontopediatria de forma lúdica, por meio de livros e desenhos, por exemplo, é o principal caminho para diminuir o receio dos pequenos com a especialidade e, ao mesmo tempo, difundir conhecimentos básicos de higiene e saúde geral e, principalmente, a bucal.
Membro do Grupo de Saúde Oral da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) e coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde Oral da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a odontopediatra Doris Rocha Ruiz acredita que “uma leitura lúdica e divertida, mas sem subestimar a inteligência da criança, colabora sempre com algo favorável ao desenvolvimento e novos aprendizados infantis. Um bom livro traz consigo o encantamento pela leitura e quando acontece em grupo incentiva a conversa sobre o tema e possibilita conhecimento e mudanças favoráveis a um estilo de vida mais saudável”. A especialista escreveu seis livros: “Dentista não é coisa do outro mundo”, “Eu e a escova”, “O troca-troca dos dentes”, “As incríveis descobertas no dia a dia com diabetes”, “O diário de uma boca em crescimento” e “Doodle book do outro mundo” [Livro de rabiscos, em tradução livre].
Em entrevista ao Boletim da Academia Brasileira de Pediatria, Doris, que é especialista em Odontopediatria, CROSP/CFO, mestre em Ciências pela Disciplina de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da UNIFESP e doutora em Ciências pela Disciplina de Pediatria Neonatal e Terapia Intensiva Pediátrica da Faculdade de Medicina da FMUSP, conta como os livros têm sido recebidos, a sua opinião sobre essa aversão à dentista e mais. Confira!
ABP: Por que a senhora acha que tantas crianças têm receio de ir ao dentista? A senhora acha que pode ser algo que vem dos próprios responsáveis? E o que pode ser feito para atenuar esse medo?
Doris Ruiz: É normal ser assim, afinal, é tudo novo e pode ser um pouco assustador. No entanto, com a ajuda dos pais e de um livro cheio de aventuras, podemos descobrir que ir ao dentista é uma experiência divertida e importante para a nossa saúde. Considero que crianças podem ter receio de forma muito natural a alguma situação nova para a sua rotina, sejam estas atividades simples ou complexas para o seu dia a dia. Por exemplo, um “aviso inesperado” dos pais para brincar em um novo local, viajar, mudar de escola, almoçar na casa de um amigo ou consultar um médico ou dentista. Essas situações podem gerar ansiedade na véspera e, em especial, na hora de sair de casa. A criança com temperamento mais difícil, introvertida ou que simplesmente possua o “medo do novo” por ansiedade relacionada a uma experiência anterior própria ou pela criação imaginária baseada em histórias que escutou de amigos ou outros familiares pode se tornar mais vulnerável a ter atitudes de contestar ou negar o convite. Os adultos, em especial os pais, precisam estar atentos porque é a dinâmica familiar e social que pode favorecer ou piorar esta circunstância. A proposta deste livro é justamente dar suporte aos pais, professores e profissionais da saúde, fomentar o diálogo do tema da consulta ao dentista, seja a primeira consulta ou não. Deste modo, o livro “Dentista não é coisa do outro mundo” foi planejado por uma especialista em Odontopediatria e uma ilustradora com formação pedagógica, para que o tema fosse abordado de uma forma verbal no texto e não verbal nas ilustrações, dentro do universo de compreensão infantil e colaborar na relação de confiança e criação de vínculo entre dentista, paciente e família, com forte apelo ao letramento em saúde oral para favorecer aos cuidados responsivos. No livro, o personagem Teodoro se surpreende com a notícia da consulta no dentista, mas no final Teodoro ele aprende que dentista não é coisa do outro mundo. Sendo assim, devemos ter em mente que a leitura colabora no reforço da consulta preventiva e dos cuidados orais até das crianças que já frequentam regularmente o dentista. O objetivo da leitura é proporcionar uma percepção positiva do ambiente e do seu dentista. Este contexto favorece o aprendizado da relação do seu presente e do futuro: “causa e efeito”, como: “vou ao dentista e aprendo que é bom para a minha saúde”.
ABP: Como surgiu a ideia de escrever os livros?
Doris Ruiz: Aos 4 anos de idade, eu já contava para minha mãe que eu gostaria de ser dentista de criança quando eu crescesse. Eu não sabia falar a palavra “dentista”, mas já sonhava em cuidar dos sorrisos das crianças. Por outro lado, como as crianças da época, encantava-me brincar e ler livros infantis, em especial os de Monteiro Lobato. Assim, sempre trouxe comigo a importância da relação dos sonhos e das memórias afetivas conquistadas com uma boa literatura infantil, no contexto do desenvolvimento das habilidades cognitivas e emocionais do indivíduo. A vida seguiu, e com a formação profissional em Odontologia, a especialização em Odontopediatria, o mestrado e doutorado na Faculdade de Medicina direcionei a minhas ações à promoção da saúde oral de forma integral e integrada para favorecer a boa qualidade de vida infantil, com as orientações durante o pré-natal odontológico, seguindo com o atendimento odontopediátrico preventivo da fase neonatal ao final da adolescência. Observei nesta trajetória clínica e universitária que havia carência de material odontológico complementar que permitisse uma leitura com embasamento científico para as condutas profissionais que atendessem ao universo infantil, que as envolvessem através de uma leitura lúdica, divertida, com a compreensão emocional e cognitiva da faixa etária de dentição decídua. Assim, surgiu a ideia de escrever livros infantis que promovessem saúde oral. Alguns anos depois, durante uma consulta de rotina odontopediátrica, conversei deste meu projeto com uma mãe de paciente, educadora e ilustradora, que se identificou com a proposta e iniciamos uma parceria perfeita em 2009, que segue até hoje, na qual juntas editamos seis livros infantis: “Dentista não é coisa do outro mundo”, “Eu e a escova”, “O troca-troca dos dentes”, “As incríveis descobertas no dia a dia com Diabetes”, o “O diário de uma boca em crescimento” e o “Doodle book do outro mundo”. Aguardem novidades para breve.
ABP: A senhora pode falar um pouco sobre eles, os temas escolhidos, as ilustrações?
Doris Ruiz: A criatividade é uma aliada poderosa na hora de ensinar os pequenos sobre a importância da saúde oral. Através de livros, desenhos e músicas podemos transformar o cuidado com os dentes em uma aventura divertida. Os livros, por exemplo, são muito mais do que simples histórias, eles nos levam a mundos mágicos onde cuidar dos dentes se torna uma grande aventura. Toda a produção dos livros tem uma característica peculiar que considero o grande diferencial, porque que não é uma simples tradução para a língua portuguesa, seja voltado aos brasileiros ou portugueses, porém, como falei anteriormente, é realizado por especialistas das áreas e é específico e envolvente para nossas culturas e valores familiares. Além disso, as crianças são cada vez mais induzidas aos jogos e livros com informações incorretas ou que não colaboram com o estímulo da sua criatividade e imaginação. Ao mesmo tempo, muitos livros infantis voltados à odontopediatria mostram doenças orais, como bactérias e dente com cárie, entre outros detalhes que podem assustar as crianças. Tenho certeza que a minha vasta experiência na clínica odontopediátrica promovendo saúde oral infantil, com ações e aconselhamentos baseados em evidências, me permitiu um olhar criterioso para as informações geradas no texto e nas ilustrações, para que tivessem como resultado, alegrar e gerar uma mensagem positiva ao público infantil com relação ao conhecimento e cuidados dinâmicos do crescimento e desenvolvimento infantil e do autocuidado com saúde. Somando o fato de que a Inês Quintanilha McGee tem papel fundamental na perfeita qualidade, criatividade e sensibilidade das ilustrações que complementam e dão vida a história. Essa coleção de livros foca na introdução de temas de saúde com harmonia entre a ciência o lúdico, o nosso personagem principal é o Teodoro, um alegre e espontâneo monstrinho amado pelos leitores infantis, tornando a leitura dos livros leve e atraente, levando como principal mensagem o cuidado com a saúde da boca em diferentes fases da infância. Seguindo as orientações de cada página, o núcleo familiar é incentivado a estar junto da criança e apoiá-la em todos os cuidados diários.
O livro “Dentista não é coisa do outro mundo” é voltado às crianças com a dentição decídua sendo dividido basicamente em três tópicos fundamentais ao letramento em saúde oral: consulta preventiva ao dentista, os hábitos de higiene oral e de alimentação e suas repercussões na saúde como um todo e na qualidade de vida infantil, sempre valorizando a importância das funções orais no bem-estar e atividades, como comer, beber, falar, cantar, sorrir e fazer caretas. Além, da informação de cuidar dos produtos utilizados, não desperdiçar pasta de dentes e água durante a escovação.
O livro “O troca-troca dos dentes” alcança a criança que está com dentes permanentes erupcionando na boca, onde o personagem Teodoro compartilha suas dúvidas e vivências. A leitura esclarece o motivo da troca dos dentes e valoriza a grande importância dos dentes de leite e permanentes em nossas vidas. Reforça o contexto de que a troca dos dentes é um momento muito especial para a criança e sua família. É uma história original e inovadora que reporta que os dentes de leite ao amoleceram e caírem naturalmente ou extraídos pelo dentista podem ser reutilizados nas faculdades de Odontologia para ensino e pesquisa. Explica de maneira lúdica para as crianças que existem células-tronco nos dentes de leite, sendo esta a razão das campanhas para se doar os dentes de leite para as universidades.
ABP: Como os livros têm sido recebidos pelo público pediátrico e pelos próprios colegas odontopediatras?
Doris Ruiz: O livro “Dentista não é coisa do outro mundo” foi publicado em 2009 e está agora na terceira edição e o “O troca-troca dos dentes”, publicado em 2011, na segunda edição, ambos foram e continuam sendo muito bem recebidos pelo público pediátrico e pelos próprios colegas odontopediatras e de demais áreas da saúde. Com certeza, a boa aceitabilidade veio pelo fato que esta coleção conseguiu aproximar a arte e a ciência de forma divertida e interessante ao nosso público-alvo. A criança é conduzida por um conteúdo lúdico que fomenta a imaginação, curiosidade e criatividade pessoal. Como resultado, a criança percebe seus próprios sentimentos através das vivências do personagem principal da coleção, ao letramento sobre os cuidados profissionais e o autocuidado de promoção da saúde oral como forma de cuidar da saúde como um todo, do bem-estar e da boa qualidade de vida. Estes livros nos permitiram participar de diversos projetos sociais em ONGs, comunidades e universidades, congressos de Odontologia e Medicina, além de entrevistas em TV, jornais e revistas. Com muito entusiasmo, participamos de projetos culturais tais como feiras de livros, projetos culturais em escolas públicas e privadas, Projeto “Lê para mim” no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, entre outras ações. Os livros incialmente foram editados no formato impresso no Brasil. O livro “Dentista não é coisa do outro mundo” teve também o formato on-line, que obteve a marca de mais de um milhão de acessos até o ano de 2023 em diversas plataformas. Este ano, sentimos a necessidade de uma atualização da história, bem como ter ilustrações mais contemporâneas. Deste modo, iniciamos a edição impressa dos livros “Dentista não é coisa do outro mundo” e o “O troca-troca dos dentes” com a Editora Letras Lavadas e é distribuído em Portugal Continental e Ilhas. No Brasil, o formato on-line está na plataforma “Árvore de Livros” com a acesso gratuito para todas as escolas públicas e privadas e caminhando para a edição impressa no Brasil.
ABP: Em sua opinião, como a arte e a literatura contribuem para a educação em saúde e na aproximação dos jovens a temas como escovação e cuidados odontológicos?
Doris Ruiz: Acredito que uma leitura lúdica e divertida, mas sem subestimar a inteligência da criança, colabora sempre com algo favorável ao desenvolvimento e novos aprendizados infantis. Um bom livro traz consigo o encantamento pela leitura e quando acontece em grupo incentiva a conversa sobre o tema e possibilita conhecimento e mudanças favoráveis a um estilo de vida mais saudável. É fato que a arte desempenha um papel primordial na educação infantil porque é o ponto de conexão do mundo real com o mundo infantil. Os recursos artísticos podem ser simples, mas necessitam ser sensíveis e efetivos, a fim de favorecer o desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional da criança. Tenho certeza de que conseguimos este equilíbrio entre enredo e ilustrações, associados a um layout que interage ao complexo envolvimento do mundo infantil. A sensibilidade artística de autores de livros infantis voltados à saúde deve visar o entendimento lúdico como forma de conectar a criança e a ciência, fomentando a escolha de comportamentos saudáveis na rotina diária, importantes no processo de crescimento dinâmico e individual infantil. Além, é claro, de que um livro impresso é uma arte interativa e divertida que promove conceitos e emoções, com a vantagem única do leitor por si só tocar, virar as páginas, possibilitar marcações e direcionar a criança para um mundo fascinante com diferentes percepções, estímulos e sensações. Algo que ajuda a habilidade motora e cognitiva, tão importante ao aprendizado da escovação dos dentes. Entendo que quando o livro infantil é realizado com carinho e muita atenção nos detalhes, a leitura prende, fortalece o entendimento, a imaginação e a criatividade da criança. Nos nossos livros, a criança se diverte ao imaginar que um dentista pode ser “peludo com antenas”, uma pasta de dentes pode ter “sabor de minhoca-marciana”, ou pode existir um “porco desastrado com asas e voando” para ajudar a fada dos dentes. Assim, a criança se identifica com algum personagem e se delicia com a história, compreendendo melhor a nova situação que se aproxima, no caso a consulta preventiva no dentista. Isto pode nutrir o desejo de buscar novos conhecimento em novos livros.