Editorial

Os riscos dos cigarros eletrônicos para crianças e adolescentes

Nominados cientificamente como dispositivos eletrônicos de fumar (DEFs), a utilização dos cigarros eletrônicos (e-cigs, vapes, pods) vem sendo impulsionada pela possibilidade de personalizar o uso, escolher os sabores e o conteúdo mas, especialmente, devido à noção geral e equivocada de que os e-cigs são inofensivos.1,2. A hipótese da eficácia dos e-cigs como ferramentas de cessação ao tabagismo ou da teoria de “redução de danos”, onde estes dispositivos seriam menos danosos à saúde quando comparados aos cigarros convencionais, vem sendo cientificamente rebatida a cada novo estudo.1,2

No Brasil, a Pesquisa Nacional em Saúde (PNS) de 2019, mostrou que cerca de 70% dos usuários dos DEFs são adolescentes e adultos jovens, com idades entre 15 e 24 anos incluindo aqueles que nunca fumaram cigarros comuns. Dados da Pesquisa Nacional em Saúde Escolar (PeNSE) coletados entre 2009 e 2019 apontaram que, 16,8% dos estudantes entre 13 e 17 anos já experimentaram, ao menos uma vez, os dispositivos eletrônicos, com tendência de maior consumo entre os meninos.3,4

Os DEFs, na sua forma mais básica, são dispositivos compostos por um circuito com reservatório contendo uma solução líquida, um atomizador para gerar aquecimento, uma fonte de energia, que habitualmente é uma bateria e um bocal para o consumo. Quando ativado, o dispositivo gera aquecimento e o fluido que passa pelo atomizador se transforma em aerossol ou vapor que pode ser tragado ou inalado pelo usuário.1

A grande variedade de modelos e de aromatizantes e, a possibilidade de usar discretamente, tornam estes dispositivos atraentes e populares entre os jovens, que muitas vezes desconhecem o fato destes cartuchos conterem nicotina, ou mesmo, a concentração exata desta substância.1 Os  dispositivos mais atuais são chamados de ‘pod’ ou ‘pod-mods’ e por vezes, estes modelos podem utilizar cartucho ou cápsula com a mesma quantidade de nicotina encontrada em 20 cigarros ou mais, ser recarregáveis ou descartáveis.5,6

A cada dia crescem as evidências dos riscos do uso dos DEFs. Os perigos já iniciam pelo circuito que abriga o fluido. Os recipientes podem ter diversas composições como ligas de níquel-cromo, cromo-alumínio-ferro e outros metais como cobre, prata, zinco e estanho.7 O aquecimento e resfriamento constante destes componentes metálicos podem deixar vestígios de partículas no fluido que será́ inalado. A elevada temperatura a que o atomizador é submetido pode produzir espécies voláteis de carbonila que contribuem para a toxicidade.7

O fluido que completa o dispositivo é composto por proporções variadas de glicerina vegetal, propilenoglicol, nicotina e agentes aromatizantes. Tanto o propilenoglicol quanto a glicerina podem formar aldeídos tóxicos quando aquecidos. 7,8

A concentração de nicotina é variável podendo ultrapassar 59 mg/ml, embora não haja garantia da qualidade ou do processo de fabricação. Lembrando que um cigarro comum fornece cerca de 2mg de nicotina ao usuário, portanto, 1ml de fluido vaporizado consumido pode ultrapassar a nicotina equivalente a um maço de cigarro convencional.8 No cérebro dos adolescentes, a nicotina afeta o desenvolvimento do sistema de recompensa, além dos circuitos que controlam a atenção e o aprendizado levando ao desenvolvimento de transtornos de humor e problemas permanentes no controle de impulsos.1 Com a procedência muitas vezes desconhecida dos e-cigs, os rótulos podem não condizer com os conteúdos reais, mascarando o verdadeiro teor de nicotina fornecido ao usuário.9,10

Danos ocorridos em vários órgãos e sistemas, em usuários frequentes e eventuais dos e-cig já foram descritos, com injúrias no sistema respiratório, sistema nervoso central (SNC), sistema cardiovascular, gastrintestinal, cavidade oral e sistema imunológico.4,11,12, 13, 14

Apesar de metabólitos tóxicos e cancerígenos serem encontrados em usuários de cigarros eletrônicos, os efeitos de longo prazo ainda estão sendo estudados, sugere-se que o uso pode aumentar o risco de câncer, uma vez que produtos químicos presentes nos aerossóis, como formaldeído, acroleína, níquel, chumbo e cádmio, são capazes de causar danos ao DNA e mutagênese.15

Entre 2019 e 2020 foram relatados nos Estados Unidos da América (EUA) cerca de 2800 casos de lesão pulmonar grave associada ao uso de cigarros eletrônicos. A doença recebeu o nome de E-cigarrete or Vaping-Associated Lung Injury (EVALI) e é caracterizada por processo inflamatório pulmonar agudo, que resulta em colapso alveolar e comprometimento grave da troca gasosa, devido à exposição a partículas tóxicas presentes nos fluídos dos e-cigs. 16

Já é estabelecido que o hábito de fumar induz inflamação significante nas vias aéreas e consequentemente piora os quadros de asma. Os e-cigs também atuam como agente deflagrador da inflamação e broncoconstricção,17 além de comprometimento da resposta imune inata dos pulmões.18

 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), mantém desde 2009, a resolução RDC 46/2009, que proíbe a comercialização, importação e propaganda de qualquer dispositivo eletrônico de fumar, contendo ou não nicotina, em todo o território nacional e esta resolução vem sendo validada a cada revisão, que ocorre periodicamente.19     

             Os dispositivos eletrônicos de fumar (DEFs), rapidamente tornaram-se uma preocupação dos órgãos de saúde pública no Brasil e nos demais países em que são livremente comercializados. As evidências cada vez mais contundentes sobre os efeitos nocivos em curto e longo prazo, seu aspecto atrativo, a mistura de concentrações variáveis de nicotina com demais compostos tornam estes dispositivos um risco potencial para a saúde de nossos jovens. Estarmos informados e aptos a orientar colegas, pais, cuidadores e educadores é o primeiro passo para protegermos nossas crianças e adolescentes deste vilão tão sedutor.

Referências

  1. Hartmann-Boyce J, McRobbie H, Lindson N, Bullen C, Begh R, Theodoulou A, Notley C, Rigotti NA, Turner T, Butler AR, Hajek P. Electronic cigarettes for smoking cessation. Cochrane Database Syst Rev. 2020 Oct 14;10(10):CD010216. Update in: Cochrane Database Syst Rev. 2021 Apr 29;4:CD010216.
  2. D.C. Chong-Silva, M.F. Sant’Anna, C.A. Riedi et al., Electronic cigarettes:“wolves in sheep’s clothing”, Jornal de Pediatria (2024), doi.org/10.1016/j.jped.2024.06.015.
  3. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de saúde: 2019: percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal: Brasil e grandes regiões. IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro: IBGE; 2020. 113p
  4. Rowell TR, Tarran R. Will chronic e-cigarette use cause lung disease? American Journal of Physiology-Lung Cellular and Molecular Physiology. 2015 Dec 15;309(12):L1398–409.
  5. Hendricks KJ, Temples HS, Wright ME. JUULing Epidemic Among Youth: A Guide to Devices, Terminology, and Interventions. J Pediatr Health Care. 2020 Jul-Aug;34(4):395-403. doi: 10.1016/j.pedhc.2019.12.008.
  6.  E-cigarette, or vaping, products visual dictionary. Centers for Disease Control and Prevention (U.S.), 2019. Disponível em: stacks.cdc.gov/view/cdc/103783.
  7. Chun LF, Moazed F, Calfee CS, Matthay MA, Gotts JE. Pulmonary toxicity of e-cigarettes. Am J Physiol Lung Cell Mol Physiol. 2017 Aug 1;313(2):L193-L206. doi: 10.1152/ajplung.00071.2017.
  8. Antonini JM, Taylor MD, Zimmer AT, Roberts JR. Pulmonary responses to welding fumes: role of metal constituents. J Toxicol Environ Health A. 2004 Feb 13;67(3):233-49. doi: 10.1080/15287390490266909. 
  9. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamentos Científicos de Pneumologia, Toxicologia e Otorrinolaringologia. Dispositivos eletrônicos de liberação de nicotina (cigarros eletrônicos e similares): “Lobos em pele de cordeiro”. 2018. Disponível em: www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/20531e-DocCient_-_DispEletr_entrega_nicotina_e-cigs.pdf Acesso em outubro 2023.
  10. Silva ALOD, Moreira JC. Why electronic cigarettes are a public health threat? Cad Saude Publica. 2019 May 30;35(6):e00246818.
  11. Banks E, Yazidjoglou A, Brown S, Nguyen M, Martin M, Beckwith K, Daluwatta A, Campbell S, Joshy G. Electronic cigarettes and health outcomes: systematic review of global evidence. Report for the Australian Department of Health. National Centre for Epidemiology and Population Health, Canberra: April 2022.
  12. Ruszkiewicz JA, Zhang Z, Gonçalves FM, Tizabi Y, Zelikoff JT, Aschner M. Neurotoxicity of e-cigarettes. Food Chem Toxicol. 2020 Apr;138:111245. doi: 10.1016/j.fct.2020.111245. 
  13. Rowell TR, Tarran R. Will chronic e-cigarette use cause lung disease? American Journal of Physiology-Lung Cellular and Molecular Physiology. 2015 Dec 15;309(12):L1398–409.
  14. Siddiqi TJ, Rashid AM, Siddiqi AK, Anwer A, Usman MS, Sakhi H, Bhatnagar A, Hamburg NM, Hirsch GA, Rodriguez CJ, Blaha MJ, DeFilippis AP, Benjamin EJ, Hall ME. Association of Electronic Cigarette Exposure on Cardiovascular Health: A Systematic Review and Meta-Analysis. Curr Probl Cardiol. 2023 Sep;48(9):101748. doi: 10.1016/j.cpcardiol.2023.101748.
  15. Alnajem A, Redha A, Alroumi D, Alshammasi A, Ali M, Alhussaini M, Almutairi W, Esmaeil A, Ziyab AH. Use of electronic cigarettes and secondhand exposure to their aerosols are associated with asthma symptoms among adolescents: a cross-sectional study. Respir Res. 2020 Nov 16;21(1):300. doi: 10.1186/s12931-020-01569-9.
  16. Sahu R, Shah K, Malviya R, Paliwal D, Sagar S, Singh S, Prajapati BG, Bhattacharya S. E-Cigarettes and Associated Health Risks: An Update on Cancer Potential. Adv Respir Med. 2023 Nov 14;91(6):516-531. doi: 10.3390/arm91060038.
  17. Kligerman S, Raptis C, Larsen B, Henry TS, Caporale A, Tazelaar H, Schiebler ML, Wehrli FW, Klein JS, Kanne J. Radiologic, Pathologic, Clinical, and Physiologic Findings of Electronic Cigarette or Vaping Product Use-associated Lung Injury (EVALI): Evolving Knowledge and Remaining Questions. Radiology. 2020 Mar;294(3):491-505. doi: 10.1148/radiol.2020192585. 
  18. Schweitzer RJ, Wills TA, Tam E, Pagano I, Choi K. E-cigarette use and asthma in a multiethnic sample of adolescents. Prev Med. 2017 Dec; 105:226-231. doi: 10.1016/j.ypmed.2017.09.023.

Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC no 46, de 28 de agosto de 2009. Proíbe a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarro eletrônico. [Internet]. Diário Oficial da União 2009. Available from: http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_46_2009_COMP.pdf/214 8a322 -03ad-42c3-b5ba-718243bd1919