Nesta edição, o Boletim ABP conversou com a pediatra e reumatologista Sheila Knupp Feitosa de Oliveira. Durante o bate-papo, a ocupante da cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Pediatria (ABP) perpassa pela sua formação, a escolha pela Reumatologia e o papel da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da própria ABP no crescimento da especialidade no país.
Autora dos livros como História da Reumatologia Pediátrica e Reumatologia para Pediatras, além de participar da organização de outras publicações, a pediatra fala sobre a importância de manter memória da especialidade no Brasil.
Boletim ABP: Por que escolheu estudar Medicina? Teve alguma influência?
Eu me lembro que, quando eu era criança me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse e eu respondia: “Eu quero ser professora e médica”. Não tinha nenhum médico na minha família, nenhum doente que precisasse de médico. Eu só achava uma profissão bonita e atribuía o ato de curar pessoas a algo muito interessante. Quanto a ser professora, muitas tias minhas eram professoras. Naquele tempo, ser professora primária e trabalhar meio período era interessante porque teria meio período só de trabalho e o resto poderia ficar em casa cuidando da família. Então, isso era o modelo natural.
Na minha adolescência, comecei o curso normal para ser professora, conforme as expectativas. Mas, quando eu comecei o curso, eu achei que aquelas matérias Didática da Linguagem, Didática da Aritmética não iam me dar a base para fazer um vestibular para medicina. Então, resolvi fazer o curso científico à noite e de manhã o Normal. Acontece que eu terminei o curso Normal e passei na faculdade que eu queria, na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E foi uma alegria muito grande ter participado daquele mundo novo que se abria para mim. E eu, que sempre tinha estudado em escola pública, continuava na universidade pública. Mas é num ambiente em que a maioria era do sexo masculino, porque só um-quarto da minha turma era feito de meninas. E foi muito interessante porque comecei aquele novo desafio numa área que ninguém trabalhava na minha família naquele campo.
Com o passar do tempo, percebi que poderia ser professora de medicina e juntar as minhas duas vontades que eu tinha desde criança. E assim fui me entusiasmando a criar em mim essa vontade de seguir uma vida acadêmica.
Eu já sabia que eu queria fazer pediatria desde o início da faculdade. Gostava de criança, tinha vontade de ser professora primária. E quando a gente começou, então, lá na pediatria, no quinto ano, eu dizia que era ali que queria ficar. Conheci o professor Pernetta, simples, dava aula de uma forma tão gostosa. Escrevia os livros de um jeito fácil, também transmitindo a experiência dele. E isso se tornou um modelo para mim.
Então, tive a sorte de, logo que terminou o curso da faculdade, entrar para a pós-graduação. Defendi tese e, quatro anos depois de formada, eu já pude fazer o concurso e ser aprovada como professora assistente da pediatria. Toda a minha vida foi exercida dentro do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG), que é o hospital de crianças que pertence à UFRJ. A minha aprovação foi um dos dias mais felizes, pois foi o pontapé para a minha vida profissional.
Boletim ABP: E como foi o caminho para a Reumatologia?
Quando eu entrei no corpo docente do Departamento de Pediatria do IPPMG, era uma época em que as especialidades pediátricas estavam se formando e eu queria fazer uma coisa diferente. Eu queria começar alguma coisa e não sabia bem o que era. Mas eu queria começar também uma especialidade. E coincidiu de ser a mesma época da inauguração do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, que é um hospital universitário (HU) para adultos da UFRJ, e as clínicas médicas foram transferidas para o HU. Elas funcionavam em cinco serviços diferentes e um desses serviços já estava atendendo crianças com enfermidades reumáticas e eles não poderiam atender criança no hospital de adulto.
Então, o professor Israel Bonomo, que era o chefe desse serviço, entrou em contato com o chefe do Departamento da Pediatria e perguntou se tinha alguém interessado em fazer reumatologia e absorver esses pacientes que já estavam sendo atendidos lá pelo serviço. Era a oportunidade certa no momento certo, e eu comecei o atendimento.
Lógico que minha formação de reumatologista não existia praticamente. Tive contato no terceiro ano do curso médico. Cheguei até a apresentar um caso de lúpus na clínica médica, mas eu precisava estudar mais. A as portas se abriram para eu fazer um estágio de especialização em reumatologia no próprio HU, que tinha sido aberto.
Eu não podia ir para fora do país, porque eu estava começando o meu contrato de professora na universidade, e eu fui fazer a reumatologia. Tanto que eu tenho o título de especialista em pediatria, especialista em reumatologia. Mesmo assim, às vezes eu precisava de apoio, de alguém que entendesse mais de criança. E, quando eu tinha um caso muito complicado, eu escrevia carta para os autores dos livros, dos papers, dos artigos que eu buscava ler e entender tudo para formar, já que eu era pioneira e não tinha um modelo onde me inspirar. Eu comecei também a procurar serviços para visitar durante as minhas férias. E assim eu fui formando a minha experiência.
Dez anos depois, o serviço já estava bem crescido, bem grande. Eu abri o primeiro curso de Especialização de Reumatologia Pediátrica e comecei a formar novos especialistas. Cheguei a formar 30 especialistas até o momento em que eu parei com esse tipo de atividade. E assim foi crescendo a reumatologia.
Esses contatos que eu tive também no exterior me ajudaram a participar de conferências de consenso internacional, me auxiliaram a fazer pesquisas multicêntricas internacionais, porque às vezes eram doenças raras. Então, havia a necessidade de juntar muitos pacientes para fazer casuísticas, para poder estudar adequadamente essas doenças. E nós levamos, então, o Brasil dentro desses grupos internacionais para praticar a reumatologia pediátrica.
Boletim ABP: Uma de suas linhas de pesquisa está ligada à cultura de avaliação da qualidade de vida de pacientes pediátricos reumáticos. Como pensar em inserir a qualidade de vida no cuidado?
Em 2007, eu usei um questionário especificamente construído para avaliar a qualidade de vida em crianças com artrite idiopática juvenil. Eu tinha interesse em saber como a doença afeta a qualidade de vida. Conforme a Organização Mundial de Saúde diz, a saúde é uma sensação de bem-estar físico, mental e social. Não é só a doença, não é só o corpo que importa.
E até o final do século passado, o foco era mais em remissão da doença, controle dos sintomas, laboratório normal e pouco se preocupava com a qualidade de como aquilo estava afetando a vida da criança e da família. Então, foi reconhecido que esse questionário, de maneira informal, deve ser incluído dentro da anamnese e da história do dia a dia, aspectos relacionados a esse bem-estar, que vai resultar na qualidade de vida do paciente; mostrando mais uma vez que essa parte da conversa, da história, às vezes é mais importante para você conseguir aderência do paciente no tratamento, a confiança dele em você e te contar em detalhes tudo o que acontece na vida dele. Nós não tratamos doenças. Nós tratamos doentes e nós precisamos então saber mais da intimidade desses pacientes.
Assim, a lição que fica é isso: tem que fazer, conversar com o paciente, a consulta tem que ser demorada, porque senão não quebra o gelo. Então, a gente tem que levar os aspectos da vida do paciente.
Boletim ABP: A senhora também é atuante na SBP, participando de departamentos, por exemplo. Como é contribuir para o crescimento de colegas pediatras, mas principalmente para a evolução dos cuidados com a criança e o adolescente?
Bom, eu contribuí na universidade formando especialistas. Multipliquei isso e distribuí para as outras universidades, outros serviços. Tem gente atendendo reumatologia pediátrica. Mas a oportunidade que a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) dá para o especialista é poder entrar em contato com todos os pediatras, o pediatra geral, aquele que vai reconhecer os sintomas e vai desconfiar que é uma doença reumatológica, que vai encaminhar. Então, acho que é muito importante a gente atuar junto da Pediatria, e a Sociedade oferece essa oportunidade através dos departamentos. Os Departamentos Científicos da Sociedade Brasileira de Pediatria são muito atuantes.
O Departamento de Reumatologia foi formado há 30 anos, durante um congresso da Sociedade Brasileira de Pediatria e estava numa mesa de artrite em criança. E ao final da discussão no debate, nós pudemos identificar cinco serviços que já estavam atuando em reumatologia pediátrica, dois no Rio de Janeiro, eu no IPPMG e a Dra. Eneida Azevedo no Hospital de Servidores do Estado, e três em São Paulo, um na Santa Casa, com a Dra. Wanda Bastos, um na USP, com a Dra. Maria Helena Kiss, e o terceiro na Unifesp, com o Dr. José Goldenberg e a Dra. Maria Odete Hilário. Nós nos reunimos e começamos a traçar planos para o futuro.
O primeiro trabalho que nós fizemos em grupo foi um trabalho multicêntrico com anti-inflamatório em criança. Depois fizemos um manual de reumatologia pediátrica, que foi distribuído para os pediatras para tomarem conhecimento, já que ainda não tínhamos um livro dedicado para pediatria sobre isso. E começamos a elaborar e fazer reuniões científicas e congresso.
Iniciamos com o Congresso Brasileiro de Reumatologia Pediátrica, quando convidávamos sempre algum especialista estrangeiro que pudesse trazer uma experiência e enriquecer a nossa experiência também. E isso também ajudou a incentivar novos pediatras a buscar a especialidade que estava crescendo no país. E fizemos então cursos; isso abriu um leque de cursos nos próprios serviços e praticamente hoje quase todos os estados do Brasil têm especialistas em reumatologia pediátrica, todos muito bem formados e é um pré-requisito ter também o Título de Habilitação em Reumatologia Pediátrica, que é fornecido pela SBP e pela Sociedade de Reumatologia, que trabalham em conjunto e que reconhecem a necessidade de ter um especialista em reumatologia atuando junto das crianças.
Boletim ABP: A senhora faz parte da Academia Brasileira de Pediatria. Como foi o processo para o ingresso?
Bom, geralmente quando abre uma vaga na Academia, é enviado um comunicado para todos os pediatras. Eu recebi esse e-mail dizendo que tinha uma vaga aberta. Li a qualificação necessária para me candidatar. Achei que eu preenchia os requisitos e me candidatei. Foi uma alegria saber que eu fui selecionada. Meses depois, eu fui receber a minha medalha.
Passei a ocupar a cadeira número 2, que é de Carlos Arthur Moncorvo Filho, que é um pediatra muito importante, filho do Moncorvo, que é o patrono da pediatria do Brasil, e que, por acaso, o pai dele, desse que é o patrono da minha cadeira, escreveu numa tese dele, lá no final do século passado, sobre artrite crônica juvenil. Então, ele, além de patrono da pediatria, eu acho que é patrono também da reumatologia pediátrica. E eu me senti meio em família, apesar de o filho nunca ter escrito nada sobre reumatologia. Agora, antes de mim, essa vaga tinha sido ocupada também por um outro importante infectologista no Brasil, o Dr. Edward Tonelli. Eu também tenho muito orgulho de estar nessa cadeira.
Boletim ABP: E, para a senhora, o que a ABP representa para os pediatras?
Eu vejo a Academia como formada por pediatras excelentes, que se distinguiram durante toda a vida no cuidado da criança e do adolescente. São pessoas que não pararam de trabalhar. Alguns ainda estão na ativa, outros se aposentaram, mas continuam interessados e trabalhando a favor da criança, não mais na assistência para protocolo, para rotina. Isso é função da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Na ABP, a intenção é manter um diálogo aberto com a sociedade como um todo, participando de atividades universitárias, mas também junto com entidades médicas e governamentais.
Os temas dos nossos fóruns, a gente tem praticado um fórum por ano, geralmente versam sobre essas áreas de interesse da Academia, que são educação, violência, família, ações governamentais, tudo o que envolve criança e adolescente.
Outra área de interesse da Academia também é preservar nossa história. Preservar a história da pediatria. E temos um projeto até de escrever sobre as especialidades. A primeira especialidade que escreveu sua história foi a infectologia. Em 2020, eu publiquei um livrinho sobre a história da reumatologia pediátrica também. Tudo isso que eu contei com mais detalhes. Acho que é uma história bonita para ser contada.
E ano passado teve a história da neonatologia pelo professor Navantino, e acho que é um projeto que vai se estendendo e não vai deixar tanto nome importante, pessoas que fizeram bem para a pediatria do Brasil não ficar esquecida.
Boletim ABP: Hoje, com a sua experiência, tem algum conselho ou ensinamento que gostaria de ter recebido no início de sua caminhada na Medicina e agora quer passar adiante?
Eu acho que a gente planeja a vida, mas por mais que se planeje, as coisas vão acontecendo. Às vezes, não são do jeito que a gente quer, mas a gente vai se adaptando. O importante é não perder o foco. O importante é não desistir. O importante é trabalhar com amor, com afeto, amor ao próximo. O importante é ensinar. Mesmo não sendo professora, você tem que ensinar.
Você tem que ensinar a mãe, ensinar o paciente sobre a doença. Você tem que apoiar a família nas dificuldades. Eu acho que tudo isso dá muito trabalho, mas isso no final dá uma alegria imensa e o retorno é fabuloso. Vale a pena.
Boletim ABP: A senhora gostaria de deixar algum recado para os pediatras do Brasil?
A pediatria é uma ótima especialidade. Abrange a parte mais importante da vida. Não é a maior, mas é a mais importante, mais cheia de mudanças e vai do período neonatal até o fim da adolescência.
É um período de grandes mudanças. O pediatra é responsável pelo futuro. Você vai manter a saúde física, mental, social. E a importância do pediatra é fundamental para esse ser vivo que vem se desenvolvendo em todos esses aspectos.