Themis Reverbel da Silveira
Membro titular da cadeira n. 18 da Academia Brasileira de Pediatria
No dia 5 de setembro é comemorado o Dia Mundial da Fibrose Cística. No Brasil, a data foi instituída pela Lei nº 12.136/2.009, com o objetivo de conscientizar a população a respeito da doença.
A Fibrose Cística (FC) – também conhecida como a Doença do Beijo Salgado e Mucoviscidose – é uma doença genética rara e progressiva, onde a criança herda duas cópias defeituosas do gene, uma da mãe e outra do pai. A FC ocorre devido às alterações ou à ausência de uma proteína envolvida na permeabilidade celular, no transporte de íons e na regulação do fluxo de cloro, sódio e água. As variantes (mutações) do gene regulador de condutância transmembranar de fibrose cística (CFTR - cystic fibrosis transmembrane regulator) são numerosas e de diversos tipos. Até o momento, são conhecidas mais de 2 mil variantes agrupadas em seis classes. De uma maneira geral, ocasionam a produção de um muco muito mais espesso e viscoso do que o normal. A variante mais comum é a F508del (classe II) que, removendo um aminoácido da proteína, altera a sua forma estrutural e bloqueia o seu processamento.
A doença ocorre mundialmente, e a sua frequência é variável de acordo com a etnia e as regiões analisadas. Há cerca de 70.000 – 80.000 pessoas no mundo com FC. No Brasil, estima-se que ocorra em 1 a cada 8.000 – 9.000 crianças nascidas vivas, sendo mais comum em caucasoides e no Sul do país.
As manifestações clínicas variam de acordo com a idade dos pacientes, intensidade e gravidade das alterações do gene CFTR. Embora reconhecida como uma afecção multissistêmica, com expressões genotípica e fenotípica heterogêneas, a doença pulmonar continua sendo a principal causa de morbidade e mortalidade dos pacientes. Mas a FC afeta também, e de maneira muito significativa, os sistemas digestivo, endocrinológico e reprodutivo.
Na infância, as principais manifestações respiratórias são tosse persistente, bronquite crônica e frequentes infecções pulmonares de repetição. Em crianças maiores e nos adolescentes, as rinossinusites e os pólipos nasais são comuns. Em relação ao aparelho digestivo, os sintomas e sinais costumam ser precoces. Obstrução intestinal ao nascimento, por íleo meconial e icterícia neonatal persistente, pode ser a manifestação inicial da doença. O muco viscoso, com reduzida fluidez, ocasiona comprometimento em vários órgãos: fígado, vias biliares, pâncreas e intestinos. Com a progressão da doença, uma proporção significativa irá desenvolver diabete melito e a maioria dos pacientes do sexo masculino será infértil. Há perturbação do estado nutricional com crescimento reduzido e dificuldade em ganhar peso, apesar do apetite ser, muitas vezes, voraz.
Por ocasião do Teste do Pezinho, é feita a triagem inicial da FC pelo SUS em todos os estados do Brasil. Quando o teste é positivo, deve ser repetido e/ou confirmado com Teste Genético ou pelo Teste do Suor. Nos dias atuais, o diagnóstico, na maioria dos casos, é feito no 1º semestre de vida. Estudo realizado pelo Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC), em 2018, revelou que o diagnóstico ocorreu em torno de 3,7 meses e a sobrevida média dos pacientes foi de 43.8 anos. A título de comparação, nos EUA em 2019, a sobrevida média era de 46,2 anos. No nosso país, há mais de 50 centros de referência para orientação e acompanhamento de pessoas com FC. Em 2018, estudo brasileiro do GBEFC identificou 5,517 pacientes, de diferentes idades, em controle regular nestes centros.
O tratamento da FC evoluiu bastante nas últimas décadas, garantindo aos afetados uma vida mais longa e de boa qualidade. O gene responsável pela doença já foi identificado, clonado e sequenciado, possibilitando enorme progresso no diagnóstico, controle e tratamento dos pacientes. Quando a doença é diagnosticada precocemente e há o acompanhamento dos pacientes por grupos multidisciplinares de profissionais, o prognóstico é bom, com a possibilidade de uma vida praticamente normal. Um aspecto de grande importância é a necessidade de manter nutrição adequada considerando a dificuldade existente na absorção e digestão dos alimentos.
O tratamento é contínuo, necessariamente multidisciplinar, vigoroso e por toda a vida, e inclui: drogas mucolíticas; medidas para controle das infecções respiratórias; fisioterapia permanente; exercícios físicos; reposição enzimática para ajudar a absorção dos nutrientes e suplementação dietética e de vitaminas. Não há como prevenir a doença que é herdada, mas o tratamento precoce retarda a progressão das lesões pulmonares, propicia nutrição adequada e aumenta a sobrevida.
Há novos medicamentos recentemente lançados pela indústria que trazem esperança. Quatro moduladores de CFTR são os mais estudados: três são corretores e um é potencializador. São capazes de alterar a proteína defeituosa, que passa a funcionar normalmente. No Brasil, em 2022, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a terapia tripla – Trikafta (ivacaftor+tezacaftor+elecaftor) para aqueles pacientes com pelo menos uma mutação F508del. Isso significa que cerca de 80% dos cerca de 5.500 a 6.000 pacientes brasileiros poderão se beneficiar.
Quando foi descrita, em 1938, a doença era quase sempre fatal na infância. Há cerca de 30 anos, a expectativa de vida do paciente foi estimada em de 7 a 8 anos. Quem nasce hoje com FC supera, sem maiores dificuldades, os 40 anos, e deverá melhorar ainda mais com o acompanhamento multidisciplinar permanente e a introdução dos novos fármacos.