Crianças internadas e responsáveis apreensivos. Para amenizar essa realidade do dia a dia de hospitais infantis, as instituições de saúde têm investido na arteterapia e em outras alternativas que levam calma e leveza para esses ambientes.
O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP) conta com o Setor de Humanização, que tem o objetivo de valorizar pessoas, estimular a sensibilidade e promover uma melhor comunicação. Nesse contexto, o Instituto da Criança e do Adolescente do HC/FMUSP mantém a arteterapia como um de seus pilares para ampliar a sociabilidade dos pacientes pediátricos.
O Boletim da Academia Brasileira de Pediatria (ABP) entrevistou a arteterapeuta e membro do Setor de Humanização do Instituto da Criança e do Adolescente do HC/FMUSP, Anna Dulce Sales, que fala mais sobre seu trabalho.
Como iniciou a sua carreira na Arteterapia?
Eu sou formada pela Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) e, durante a graduação, me dediquei à educação e à música. Compondo para o teatro infantil, eu reuni um repertório de canções para crianças, que adaptei para a realidade terapêutica. Inicialmente, em 2014, atuei com pessoas com Síndrome de Down, na Rede Lucy Montoro de Reabilitação. Com o tempo, passei por diferentes unidades da Rede e realizei oficinas terapêuticas de música com crianças, adultos e idosos, com diversos tipos de deficiência. Em 2017, eu fui transferida para a equipe de Humanização da Pediatria do HC/FMUSP, onde tive contato com a saúde institucional e as práticas de cuidados paliativos. Hoje, meus estudos estão direcionados à saúde espiritual e ao uso da música como suporte artístico para promover sentido e propósito para pacientes pediátricos e famílias em situação de adoecimento e/ou morte, independente de crença ou não crença dos indivíduos.
Por que começou a trabalhar especificamente em hospitais pediátricos?
Desde o início da minha carreira como musicista e terapeuta, o público infantojuvenil sempre foi o meu alvo. Uma angústia pessoal e profissional minha é como os adultos não permitem que os pequenos expressem sua dor e sofrimento, mesmo sabendo que nem todas as crianças têm uma vida fácil. Há muitas pessoas que passam violência, adoecimento e abandono na infância, uma fase da vida que é formadora e vulnerável. Aos adultos é permitido falar e tratar suas dores, mas as crianças são afastadas do sofrimento e impedidas de processá-lo. Eu me lembro bem quando atendi uma menina órfã na enfermaria do HC/FMUSP e compus para ela uma música sobre o Batman, que é um personagem que também não tem família biológica, e enquanto conversávamos sobre o tema, passou uma funcionária e eu pude ouvi-la falando: “Ai, que horror!”. A menina não se sentia feliz com o abandono parental e toda vez que tentava falar do assunto os profissionais desviavam o foco, forneciam desenhos, brinquedos e alimentos para alegrar a menina, até que um dia a garota gritou: “Minha mãe me deixou aqui e eu estou morrendo!”. Fazia falta o acolhimento da dor, sem desvios. A cultura musical contempla muito bem o sofrimento dos adultos, mas o cancioneiro infantil não aborda a dor de maneira que as crianças em situações difíceis possam identificar-se e externar sentimentos negativos. Da mesma forma, a cultura contempla muito bem os pensamentos e sentimentos das pessoas típicas e sadias, mas há pouco que se refira a pessoas divergentes que experimentam a hospitalização. Minha composição musical é direcionada a produzir identificação para crianças e adolescentes cuja vida é rara e se dá em grande parte em uma instituição de saúde.
Como é o seu trabalho no HC/FMUSP e no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil? Ele envolve as famílias e os funcionários também?
Eu sou uma profissional focada em saúde espiritual e trabalho especialmente com música religiosa – de qualquer religião – nas áreas de cuidados paliativos, cuidados de fim de vida e acolhimento a óbito na pediatria do HC/FMUSP. A oferta de cuidados com a saúde espiritual para pacientes e famílias de orientação cristã é de fácil acesso e amplamente oferecida por organizações da sociedade. No entanto, não se pode dizer o mesmo sobre as religiões não cristãs e de minorias, especialmente os credos de origem africana e indígena, que sofrem muito preconceito dentro e fora dos hospitais. Com o meu trabalho, eu procuro fomentar a saúde espiritual em momentos de dor e garantir o direito das pessoas de cultivarem suas fés sem discriminação. Um dos focos do meu trabalho são os adolescentes em final de vida, porque eles costumam procurar outras fés que não são as da família. Para os abraâmicos (cristãos, judeus, muçulmanos, bahá’is e rastafari), a morte leva a um longo descanso que é interrompido pelo juízo final, essa perspectiva parece acolhedora para uma pessoa idosa que viveu plenamente a sua vida, mas, para um adolescente que teve a vida limitada e abreviada por uma doença grave, as religiões que propõe a reencarnação e outras formas de existência em outros mundos, como o budismo, a umbanda, o espiritismo e outras oferecem uma perspectiva mais atraente, porque essas pessoas têm vontade de viver e ter uma outra chance. Muito do meu esforço profissional é combater a discriminação dentro das famílias e fornecer aos adolescentes, a partir dos 13 anos, o direito de escolher a sua espiritualidade diante da possibilidade da morte. Uma das definições de saúde espiritual é a habilidade de dar sentido a acontecimentos da vida e enxergar propósito em estar vivo. Essa modalidade de saúde, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), desde 1998, não pode ser um privilégio das pessoas que creem em Deus ou têm alguma fé, uma vez que, uns dos grupos que mais cresce no Brasil e no mundo é o grupo das pessoas sem religião. Nesses casos, a arte pode substituir a fé na produção de sentidos para situações difíceis.
Você consegue perceber a melhora de humor e até da autoconfiança dos pacientes internados que participam dos programas de arteterapia?
Eu consigo perceber que as experiências artísticas, sejam elas terapêuticas ou não, são capazes de despertar a parte sadia das crianças em tratamento e gerar lembranças da instituição de saúde que vão além da doença, do tratamento e do medo da morte. A música pode ser usada por muitos profissionais, de diversas áreas, para desenvolvimento da fala (através do canto), das capacidades motoras (através do manejo de instrumentos musicais) e do desenvolvimento da memória e cognição (através da interpretação e memorização de canções). Além disso, um profissional aberto a estudar diferentes repertórios pode atuar no acolhimento de crianças que vêm de uma cultura diferente. A música pode transportar um paciente e sua família para a sua realidade de origem, podendo ser uma forma de amenizar a dura rotina hospitalar. Hoje em dia, um suporte artístico muito comum entre as crianças e adolescentes é o vídeo, essa forma de produção artísticas tem se tornado muito acessível ao público infantojuvenil, tanto no âmbito do consumo, quanto da produção. Muitos adolescentes usam a produção videográfica para dividir com a sociedade as experiências raras que têm dentro das instituições de saúde e produzir informação sobre suas condições, gerando empatia e representatividade.
Para você, qual a importância da música em ambientes hospitalares?
A música e outros suportes artísticos podem contribuir em diversas áreas da pediatria, entre elas: pedagogia hospitalar, terapia ocupacional, humanização, fisioterapia, saúde mental e espiritual. Muitas vezes, uma criança coloca em ação, no ato de desenhar ou tocar uma música, habilidades que desenvolveu separadamente em diversas terapias de forma prazerosa e lúdica. A arte, em suas variadas modalidades, pode auxiliar na construção da identidade de um paciente pediátrico, produzindo identificação desse paciente com a cultura produzida em sua comunidade e fazendo-o expressar elementos da sua personalidade e suas preferências. No caso de crianças e adolescentes com doenças graves que têm a vida abreviada, a arte pode contribuir para que a curta experiência de vida dessas pessoas seja ampliada e enriquecida. No caso de morte, a arte pode ser fundamental na memória dos enlutados. Uma mãe que perde uma criança pode guardar consigo a lembrança de uma criança que sofreu muito, foi submetida a muitos tratamentos dolorosos e faleceu ou pode recordar que seu filho gostava muito de trap e hip-hop e usava muito a cor azul em suas pinturas, desenhos e roupas. A diferença entre essas duas lembranças é a arte.