Palavra do Presidente da ABP

Século XXI: uma sociedade acolhedora ou hostil para crianças e adolescentes?

O instinto de sobrevivência do homo sapiens permitiu que, desde os primórdios, se adaptasse e vencesse os inúmeros desafios. Entretanto, recentemente vem chamando a atenção o número crescente de adolescentes que ingressaram em nossa UTI pediátrica devido à tentativa de suicídio. Por não sermos um hospital de referência para atendimento de causas externas, este evento excepcional no passado tornou-se mais frequente. Evidentemente, a repetição deste achado não pode ser atribuída a casualidade. Ao revisar a literatura, observamos que o Brasil e os Estados Unidos vivem exatamente o mesmo fenômeno, duplicando entre 1999 e 2021 os casos de morte por suicídios na faixa etária de 5 a 19 anos. No Brasil, ocorrem hoje 7 mortes por suicídio nesta faixa etária por 100mil habitantes. Alguém poderia dizer que se trata ainda de um número pequeno. Entretanto, deve-se considerar pelo menos dois aspectos: a) esta taxa de mortalidade apresenta-se ainda com tendência crescente sem ter atingido seu patamar, b) trata-se da taxa de mortalidade e não de tentativas, que são a imensa maioria e não são computados nestas estatísticas.

Não restam dúvidas que a sociedade neste século XXI organizou-se com características muito peculiares e que afetam o desenvolvimento infantil, tais como: a) a ruptura precoce da tradicional “bolha familiar de proteção e confinamento da criança”. Em função das necessidades laborais de pais e mães, as crianças desde tenra idade estão sendo inseridas em outros ambientes como creches, escolinhas etc.; b) o crescente tensionamento e ambiente belicoso de nossa sociedade (vide taxa de assassinatos, mortes no trânsito etc.); c) a excessiva exposição de crianças e adolescentes a ambientes virtuais sem o devido controle, nos quais seres mais fragilizados podem sucumbir (lembrar aqui da história da “baleia azul” ou da “brincadeira” da perda de fôlego onde a cabeça da criança  era envolta por saco plástico. Ambos, veiculados pela rede mundial de computadores.); d) o culto exagerado ao consumo de bens aliado à tolerância para a falta de limites comportamentais gerando indivíduos egoístas, mimados, com baixo limiar à frustração e que desrespeitam as leis de convívio social; e) a inaceitável tolerância e exposição de crianças a álcool e drogas. Desta forma, a necessária imagem idealizada e gravada no inconsciente de crianças e adolescentes revelando pais protetores, presentes a todo momento, que constituíam a referência de conduta e padrão de comportamento, vem sendo progressivamente substituída e construída em ambientes menos acolhedores e a partir de modelos impessoais. Este conjunto perverso, aliados a outros fatores pessoais e ambientais, promove sentimentos de insegurança, insatisfação e falta de inciativa, induzindo a busca por atividades que tragam “prazer imediato e a baixo custo” (da tela do celular ao uso precoce de álcool e drogas).

No passado, os grandes vilões responsáveis pela mortalidade na infância e adolescência podiam ser combatidos com vacinas, antibióticos, saneamento básico, cuidados nutricionais e, inclusive, hospitalização. Atualmente, o desafio de garantir saúde para as crianças está no modelo e na estruturação de nossa sociedade. Qual o modelo de cidadão brasileiro que desejamos e estamos proporcionado para a formação de nossos filhos e netos? Os resultados de diversos indicadores nos mostram que estamos produzindo em escala industrial jovens com grandes lacunas educacionais (falha em casa e na escola), pouco competitivos ou produtivos no mercado de trabalho, centrados em si, com pouca visão da responsabilidade social, que não respeitam normas e regras, buscando o sucesso a qualquer custo, sem se preocupar em utilizar os melhores meios para alcançá-los. Pode parecer inacreditável, mas pode-se concluir que no século XXI o maior desafio a sobrevivência do homo sapiens tenha sido proporcionado por ele mesmo, criando uma sociedade impessoal e hostil, na qual crianças e adolescentes mais vulneráveis e em diversas regiões do planeta acabam por renunciar ao instinto mais básico (o instinto da sobrevivência). A solução para este e demais desafios está muito além dos limites da Medicina, está na definição de prioridades que tornem nossa sociedade mais acolhedora e protetora para o futuro de nossos descendentes.