Publicado/atualizado: maio/2023
Departamento Científico de Dor e Medicina Paliativa
O luto é uma reação emocional intensa diante de uma perda. Essa perda não se resume apenas à morte, mas também à variadas situações dolorosas ocorridas durante toda a vida, tais como: o rompimento de um relacionamento, de uma amizade, a saída de um trabalho, uma decepção, uma despedida, dentre muitas outras. O luto é vivenciado como uma imensa tristeza, uma perda de interesse pelo mundo, uma sensação de que a vida perdeu o sentido. Diante de tanta dor, é comum também a presença de sintomas no corpo, tais como dor no peito, alterações na memória, distúrbios no sono, etc. A pessoa que está em luto pode também isolar-se, revivendo, por meio das lembranças, a sua relação com a pessoa querida que morreu. Mesmo com tantos sintomas, o luto não é considerado uma doença, é um processo natural e necessário diante da dor de uma situação de perda. Não há um tempo certo, padrão, para a finalização de um processo de luto, cada pessoa lida com essa dor do seu jeito e precisa encontrar um novo sentido para a vida. Quando uma pessoa querida se vai, perdemos muito mais do que a sua presença física: o seu lugar na nossa vida, os sonhos construídos juntos ficam abalados. O mundo torna-se diferente sem aquele sorriso, aquele olhar e aquelas palavras. E atravessar o luto não significa esquecer aquele que se foi, mas sim compreender que, mesmo ausentando-se fisicamente, a pessoa querida deixou marcas profundas, ensinamentos que a torna presente para sempre.
É comum cultivarmos a ilusão de que o mundo das crianças é marcado pela “inocência” e pela ausência de sofrimento. Porém, quando as observamos com calma e com atenção, percebemos que suas vidas, assim como as do adulto, têm também suas dificuldades. A vida impõe perdas e, com as crianças, essa realidade não é diferente. Desde cedo, o bebê precisa aprender a lidar com a ausência da mãe por longos períodos, com a perda do seio da mãe, o desmame. A perda dos dentes de leite, a saída da segurança da casa para ir para a escola. O processo de “crescer” na adolescência é marcado também por muitas perdas, renúncias. O adolescente não é mais criança, nem adulto ainda. Sente-se estranho por não reconhecer mais o seu corpo que está mudando; perdeu-se o corpo de criança! No mundo da criança os papéis estavam bem definidos e o adolescente precisa encontrar um novo lugar em sua casa, na escola e na vida. Perder faz parte do ciclo da vida e exige que a pessoa se reconstitua, aprendendo a lidar com o novo momento.
É importante ter em mente que a compreensão que a criança pequena tem sobre a morte é muito diferente da do adulto. Estudos sobre o tema do luto na infância descrevem que a evolução do conceito de morte para as crianças caminha lado a lado com o desenvolvimento cognitivo. Antes dos 3 anos, a criança percebe a morte apenas como ausência e falta. Já entre os 03 e 05 anos, a morte assemelha-se a um estado de sono. Nesse momento, a criança, imersa em suas fantasias, acredita que pensamentos, desejos e palavras podem causar ou evitar a morte. É comum ter sentimento de culpa diante da morte de uma pessoa querida, pois associa a ausência à desejos e pensamentos agressivos. De 05 a 07 anos, a criança consegue entender a morte como “irreversível” e “inevitável”, ou seja, como o destino de todos, e como um estado em que todas as funções do corpo humano param de funcionar. Aos 10 e 11 anos, ela consegue ter uma compreensão da morte de forma mais abstrata, formulando hipóteses sobre a sua causalidade. Podemos perceber, assim, que a criança, à medida que vai amadurecendo cognitivamente, apropria-se do conceito de morte de forma mais profunda. Porém, se essa tabelinha das idades acima facilita nossa compreensão, é preciso saber também que crianças pequenas podem avançar etapas, adquirindo a capacidade de compreender a morte como irreversível. Crianças que tiveram experiências precoces com situações de morte, seja de pessoas próximas ou animais de estimação, constatam, pelas suas vivências, que a morte é para sempre! Assim, para compreender em que ponto do desenvolvimento a criança está, é importante escutá-la e permitir que ela fale sobre o tema.
Quando morre uma pessoa querida na família, é comum nos perguntarmos sobre como agir diante das crianças. Afinal, no imaginário dos adultos, elas parecem não compreender temas tão complicados quanto a morte. Além do mais, desejamos proteger a criança de temas dolorosos, acreditando que falar sobre a morte pode causar mais sofrimento. Essas justificativas podem esconder a dificuldade e o sofrimento do adulto em lidar com a morte. O adulto, em luto, angustia-se por ter que explicar algo que nem mesmo ele é capaz de entender. Afinal, o que dizer à criança sobre a morte? Diante dessa dificuldade, é comum deixar a conversa com a criança para depois, impedindo-a de ir ao velório, escondendo informações e, em alguns casos, mentindo sobre o destino da pessoa morta. Importante lembrarmos que o adulto está sofrendo com a perda, por isso age dessa forma, tentando ganhar tempo, um “respiro”, para conseguir encarar a criança. Porém, precisamos refletir sobre isso e considerar os efeitos do silêncio sobre a criança. A criança começa a ver a morte como um segredo, sentindo-se sozinha e desamparada. Por estar atenta aos sentimentos, olhos vermelhos, choro dos adultos, a criança percebe que algo ruim aconteceu, mesmo que não saiba dizer o que é. Importante lembrar que a criança é muito observadora, sendo capaz de captar no ar os segredos mais ocultos dos adultos. Somente observá-las e escutá-las para perceber esse fato!
Importante refletirmos que o que gera mais sofrimento não é falar sobre a morte, e sim a própria morte. Perder algo ou alguém importante é uma das experiências mais dolorosas de uma vida! Infelizmente, o mundo da criança não está protegido dessas perdas. A criança, mesmo pequenina, vivencia experiências de morte de seus entes queridos, seja de avós, pais, amiguinhos, animais de estimação. Abrir espaço para conversar sobre a morte, a tristeza, os medos, é uma forma de mostrar à criança que ela não está sozinha. Sobre a morte não há um saber universal. Cada um de nós constrói estórias sobre a morte, considerando nossas crenças, espiritualidade, religião. Muito mais importante do que ter todas as respostas para a criança é estar presente e suportar ter essa conversa difícil com ela. Em muitos momentos, a criança fará perguntas que não têm repostas certas, absolutas. O adulto pode não saber responder e, dizer: “não sei, vamos descobrir juntos”, isto fortalece a relação com a criança, pois mostra a ela que os adultos também não sabem tudo. O “não sei” pode abrir espaço para o diálogo e para a construção de uma estória com a criança. Como por exemplo, a criança de 05 anos, que imagina, junto com seu pai, que a mãe foi morar com a avó e com seu cachorrinho no céu, criando cenas engraçadas de travessuras de seu cãozinho falecido. Uma conversa natural, sincera, abrindo espaço para falar sobre sentimentos, como saudade, tristeza, dor, medo, etc. Muito mais importante do que a estória a se contar, é se permitir falar! Falar é poder compartilhar sentimentos, sensações, fantasias. Conversar é uma forma de não estar sozinho! Falar sobre a morte é dizer do que não sabemos, mas que dói tanto que nos obriga a improvisar e a inventar uma estória!
Para essa pergunta, não há uma única reposta. Quando falamos de seres humanos, tudo é complicado, pois cada pessoa é única e reage de formas diferentes a situações parecidas. Para tomar essa decisão, é preciso considerar alguns elementos, tais como os valores, o significado do funeral para a família. Importante pensar que os rituais são relevantes na medida em que permitem vivenciar a perda, a partir de despedidas. O funeral permite também a percepção concreta da morte, quando vemos e tocamos o corpo da pessoa querida. Crianças que não participaram do ritual do velório podem, mais tarde, pedir à família que as levem ao cemitério para conhecerem para onde o ente querido foi levado. É comum que os adultos, por se sentirem muito frágeis, chorosos, no enterro, achem melhor que a criança não presencie tal momento, acreditando estar protegendo-a do sofrimento. O mais importante, nesse caso, é compreender as razões para a decisão de não levar: se o adulto consegue suportar a presença da criança nesse momento. Importante, caso a decisão seja de levá-la, ter a presença de um familiar que se sinta preparado para conversar com ela sobre o ritual, apoiando-a emocionalmente e permitindo que ela se despeça, faça perguntas. Muito do que a criança presencia, nesse momento, somente vai ser compreendido mais tarde. Durante o funeral é comum a criança demonstrar curiosidade sobre o corpo do ente querido, uma vez que sua compreensão sobre a morte varia de acordo com seu desenvolvimento cognitivo. Ela pode fazer perguntas, tais como: que horas ele vai acordar? Ou: se, ao fechar o caixão, ele vai ficar com medo? Tais perguntas precisam ser acolhidas e respondidas, se os adultos conseguirem no momento. Se não suportarem nesse momento delicado, é importante que, quando sentirem-se um pouco mais fortalecidos, abram espaço para que a criança fale, caso ela deseje voltar a esse assunto.
O luto da criança tem características próprias. Quando muito pequeninhas, elas associam a morte com o “ir embora” ou “dormir”, não conseguindo ainda compreendê-la como algo irreversível. Se quem dorme, pode acordar, e quem vai embora, pode retornar a qualquer momento, a criança espera, durante um período, que a pessoa que morreu apareça novamente. É comum, nesse momento, perguntas dirigidas aos adultos sobre onde está o ente querido e quando voltará. Durante esse período, a criança costuma agir naturalmente, sem impactos emocionais aparentes, vivendo sua rotina normalmente, o que gera estranhamento nos adultos. Se nos adultos, o luto costuma iniciar-se tão logo a morte acontece, para a criança, há um espaço de tempo em que ela costuma agir como se nada tivesse acontecido. Somente com o passar do tempo e a percepção de que a pessoa não retornou é que a criança vai perceber a gravidade da situação, vivenciando a dor da perda em seu luto. Quando reparar que algo está errado, a criança começa a se perguntar sobre as razões da ausência do ente querido. Como uma boa investigadora, ela cria teorias, tentando encontrar explicações para a morte. Esse momento pode ser tenso e bem solitário, pois no mundo da criança fantasia e realidade se confundem-se. É comum a criança acreditar que a raiva que sentiu ou os desejos agressivos que dirigiu à pessoa querida foram a causa da morte. Diante dessa certeza e da culpa, pode haver comportamentos de autopunição ou isolamento, que, ao se prolongarem, precisam de atenção e cuidado.
O luto é um processo natural, diante de uma experiência de perda significativa. Não é considerado, assim, uma doença que precisa de intervenções imediatas. No geral, o luto vai se concluindo à medida que a dor vai sendo vivida e a busca de sentido para a perda e para a vida do morto vai sendo reconstruída. Porém, há situações em que esse processo vai se prolongando tanto, que continuar a viver parece algo impossível. O sofrimento torna-se intenso demais e o isolamento da pessoa impossibilita o retorno às suas atividades e à sua vida. Estudiosos do tema, falam que quanto mais conflituosa a relação com a pessoa morta, mais difícil é o processo de luto. Isso porque no luto essa relação vai ser revivida, para ser ressignificada. A presença de amor, raiva, revolta na relação com a pessoa morta, faz com que apareçam sentimentos de culpa. No caso da criança, algo semelhante acontece. Quando ela percebe que a morte não tem volta, que é para sempre, seus questionamentos sobre o porquê são invadidos por teorias em que fantasia e realidade se misturam. Diante da morte de um genitor, por exemplo, a criança pode acreditar que sua mãe foi embora porque ela se comportou mal, ou porque agrediu o irmão, por exemplo. Na mente das crianças, sentimentos de raiva e comportamentos agressivos podem causar a morte de uma pessoa querida. Diante disso, a criança pode apresentar embaraços em seu processo de luto, e, em meio ao sentimento de culpa, inicia comportamentos de autopunição, entrando em um processo depressivo. Importante, assim, observar como as crianças estão lidando com a morte de uma pessoa querida, observando seus comportamentos e sentimentos para que, possam contar com ajuda especializada de um psicólogo, quando necessário.
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