Para além do conceito meramente religioso, a espiritualidade é uma dimensão da existência humana que conecta o indivíduo ao transcendental. Ela envolve aspectos como o propósito de vida, valores éticos e morais, o relacionamento com a natureza, os vínculos afetivos e a busca pelo sagrado. Esse campo da existência humana permeia diversas esferas da vida cotidiana. Com o objetivo de aprofundar os estudos sobre a influência da espiritualidade na saúde de crianças e adolescentes, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) anunciou a criação do novo Grupo de Trabalho (GT) "Saúde e Espiritualidade em Pediatria".
Segundo destaca a coordenadora do GT, dra. Lélia Cardamone Gouvêa, é inegável a importância da espiritualidade para o bem-estar dos pacientes, bem como a intensificação dos trabalhos científicos nacionais e internacionais a respeito da área. Confira mais detalhes na entrevista abaixo, concedida pela pediatra sobre o assunto:
SBP Notícias: Como você enxerga a relação entre espiritualidade e saúde infantil?
Dra. Lélia Cardamone Gouvêa: Um artigo recente, de 2022, traz um modelo da Organização Mundial de Saúde (OMS) que apresenta o ser humano como a união de espírito, mente e corpo¹. Precisamos entender essa integralidade no também no atendimento à criança, como já ocorre hoje em outras especialidades médicas, como na cardiologia, que desde 2012 tem o Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (GEMCA) e incluiu o tema nas Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia de 2019.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), em 2011, respondeu a uma consulta sobre medicina e espiritualidade no Brasil, afirmando que “no exercício da profissão médica, não há que existir incompatibilidade entre a fé e a razão, entre a crença e o conhecimento científico, desde que respeitados os princípios básicos irrefutáveis da boa prática médica".
SBP Notícias: Existem evidências que indicam que a espiritualidade pode impactar o tratamento e bem-estar de crianças e adolescentes?
Dra. Lélia Cardamone Gouvêa (LCG): A literatura científica em relação ao estudo da espiritualidade na infância e na adolescência teve um crescimento muito grande nesse último ano. Se considerarmos a base de dados científica do PUBMED, o descritor "spiritual children", no período dos últimos 10 anos, chegou aproximadamente a um total de 1.783 artigos. Mas essa produção vem aumentando e nos últimos 5 anos já encontramos 1.121. Essa mudança denota o quanto a literatura médica e os cientistas estão prestando atenção ao papel que esse tema tem em benefício das crianças e dos adolescentes.
Por exemplo, uma pesquisa publicada na revista Psychological Science observou que o bebê, ao ser exposto a uma discussão dos pais, enquanto está dormindo, tem o seu cérebro afetado pelo tom de voz de raiva. Há registros de mudanças no cérebro da criança em função do tom da voz dos adultos. Outro caso é se a criança mora em um ambiente onde convive com experiências de desequilíbrio emocional constantes. Essas situações afetam a esfera emocional e o funcionamento orgânico.
Há pacientes que têm febre sem uma justificativa e não têm nenhuma alteração detectada no exame clínico e laboratorial. São crianças que abruptamente mudam seu comportamento habitual. Elas estão saudáveis, com bom desenvolvimento e, de repente, mudam. O pediatra é consultado e não encontra nada no exame físico ou laboratorial, mas constata que a criança não está em seu estado normal.
Na anamnese, verifica-se uma possível alteração no ambiente em que ela vive, coincidindo justamente com o início da alteração física descrita pelos familiares. Se constatada a causa emocional desencadeante, é possível fazer com que a criança retorne de imediato ao seu estado habitual de comportamento, se houver a mudança do contexto familiar e uma vibração harmoniosa na casa.
É importante podermos estudar esse fenômeno para formar recomendações mais adequadas, justamente para não misturar situações que têm causas distintas. Desde 1996, existe uma revista internacional sobre espiritualidade na infância (International Journal of Children's Spirituality) que publica artigos e pesquisas. Precisamos abrir o nosso olhar, perceber como tudo está mudando à nossa volta.
Nós vivemos, depois desse quadro importante da pandemia, uma mudança intensa no estado emocional, físico e espiritual das pessoas. É preciso olhar, estudar e entender quais as reais necessidades humanas e, do mesmo modo, o atendimento pediátrico ter atenção ao nosso paciente como ser integral.
SBP Notícias: O que motivou a criação deste grupo e qual a importância de incluir a espiritualidade no contexto da medicina pediátrica?
Dra. LCG: O Grupo de Trabalho surgiu com o objetivo de aprofundar nossa atenção ao tema. Esse grupo já existe há alguns anos na Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Em Minas Gerais, também foi fundado posteriormente. Mais recentemente, ocorreu a criação no Rio de Janeiro (RJ). Temos visto o interesse de colegas de todo o Brasil. Por isso, precisávamos ter este espaço dentro da SBP para nos dedicarmos a compreender melhor os conhecimentos e as pesquisas sobre a espiritualidade da criança e do adolescente.
SBP Notícias: A formação do GT está relacionada a alguma religião?
Dra. LCG: Não. Não é um estudo religioso. A religião pode facilitar o acesso à nossa espiritualidade, mas a espiritualidade é uma característica universal, que se inicia desde quando começa a vida, ela é o sentido da vida. É o que nos motiva, é o contato que você tem consigo mesmo, com o outro, com a natureza e a relação com o transcendente (que excede os limites de sua rotina habitual). Ela se expressa através de suas atitudes, comportamentos, hábitos e práticas.
A natureza tem a capacidade de nos harmonizar, nos equilibrar. Outro exemplo é quando nós estamos em contato com pessoas que nos preenchem, nos fazem mais resistentes. Da mesma forma, quando nós conversamos conosco mesmo. Qual é o meu sentido de vida? O que eu quero? O que eu desejo? Como eu vou conduzir a minha vida? Isso é a nossa espiritualidade! É o significado da vida. Onde nós buscamos o sentido, os momentos de conforto, paz e equilíbrio pessoal. A felicidade é uma sensação de gratidão, alegria, bem-estar e de plenitude, que não é posse material. Reconhecemos a diferença do ser e do ter, quanto mais vivemos.
Nós precisamos de um significado que nos dê forças e resiliência às situações de adversidade e provas, que são muitas. Nós precisamos ter algo dentro de nós que nos fortaleça, que é o nosso significado de vida. Quem tem uma crença religiosa pode, por vezes, facilitar o acesso à espiritualidade. Mas uma música suave e calma que nos eleve também nos predispõe a acessar a nossa espiritualidade. Porque ela traz harmonia, equilíbrio, boas energias. Sabemos que tudo é energia, tudo é impermanente e que a matéria é modificada pelo pensamento, como nos tem demonstrado a física moderna. É importante conhecermos a nossa espiritualidade, para que possamos modificar posturas, atitudes e pensamentos que afetam a nossa saúde.
SBP Notícias: Qual o principal objetivo do Grupo de Trabalho Saúde e Espiritualidade em Pediatria dentro da Sociedade Brasileira de Pediatria?
Dra. LCG: A proposta é nos reunirmos com os colegas das filiadas, que já estudam e se dedicam ao tema, através de grupos, núcleos ou departamentos já constituídos, e que junto a esses pediatras sensíveis ao tema, e ligados às filiadas, possamos aprofundar o conhecimento dos benefícios e características da espiritualidade. Vamos dar espaço para trazerem as suas experiências e estudarmos juntos a importância desse tema para a pediatria. Criar momentos de encontro para produzir material e distribuir para os nossos colegas, adicionando conhecimento ao que já temos.
SBP Notícias: Você acredita que a espiritualidade pode ajudar na comunicação entre médicos, crianças, adolescentes e suas famílias, especialmente em momentos delicados, em situações de estresse ou sofrimento, como em doenças graves ou terminais?
Dra. LCG: Sim, sem dúvida nenhuma. A literatura médica é extensa a esse respeito. Há muitos benefícios. Dá força, resiliência, confiança e determinação ao paciente. Traz motivação na forma de enfrentar a vida para continuar a luta e recuperar a sua saúde. É inquestionável. A produção científica em espiritualidade é maior descrevendo principalmente as crianças em estado de maior fragilidade física. O paciente em contato com sua espiritualidade tem muito mais tranquilidade para enfrentar os desafios e decidir por colaborar com o tratamento.
A literatura científica sobre cuidados paliativos pediátricos destaca o papel fundamental da espiritualidade nesse contexto. A experiência de lidar com uma doença crônica ou terminal leva a criança a estabelecer uma nova relação com o transcendente, com sua família e consigo mesma. A família também passa por uma profunda transformação, reavaliando seus valores e prioridades. Ao reconhecer e valorizar a dimensão espiritual dos pacientes, os profissionais de saúde podem oferecer um cuidado mais integral e humanizado, contribuindo para melhorar a qualidade de vida de crianças, adolescentes e suas famílias.
Há um estudo publicado no J Health Psychol. 2020² que analisa crianças com saúde normal em comparação a crianças que tiveram câncer, mas já estão fora de tratamento e consideradas curadas. Elas têm uma visão diferente. Elas e suas famílias têm uma perspectiva de valores diferentes. Esse estudo mostra que na situação de doença há um fortalecimento a respeito do significado da vida e da sua espiritualidade. É sobre aproveitar cada momento, viver cada dia. Aproveitar a convivência com o seu filho agora! Há um outro sentido maior na vida. Você não vai ficar reclamando de coisas pequenas e se importando com elas. Há algo mais significativo que você precisa atentar. O tempo se torna muito mais precioso.
Referências:
1.Woroniecki R, Moritz ML. Investigating the human spirit and spirituality in pediatric patients with kidney disease. Front Pediatr. 2023 Feb 23;11:1104628. doi: 10.3389/fped.2023.1104628. PMID: 36911014; PMCID: PMC9996045.
2. Moore K, Talwar V, Gomez-Garibello C, Bosacki S, Moxley-Haegert L. Children's spirituality: Exploring spirituality in the lives of cancer survivors and a healthy comparison group. J Health Psychol. 2020 Jun;25(7):888-899. doi: 10.1177/1359105317737605. Epub 2017 Nov 6. PMID: 29103307.J Health Psychol. 2020 Jun;25(7):888-899.
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