No Brasil, todos os dias, são notificados, em média, 233 agressões de diferentes tipos (física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes com idades de até 19 anos. Somente em 2017, a soma desses três tipos de registro chega a 85.293 notificações. Boa parte dessas situações acontece no ambiente doméstico ou têm com autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas. Os dados foram extraídos pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), mantido pelo Ministério da Saúde (MS).
Desse total de casos notificados pelos serviços de saúde, 69,5% (59.293) são decorrentes de violência física; 27,1% (23.110) de violência psicológica; e 3,3% (2.890) de episódios de tortura. O trabalho não considerou variações como violência e assédio sexual, abandono, negligência, trabalho infantil, entre outros tipos de agressão, que serão abordados pela SBP em publicação a ser divulgada em 2020.
Ao analisar a série histórica cobrindo o período de 2009 a 2017 (informações mais recentes disponíveis), o volume de agressões chega a 471.178 registros. Impressiona que desde a implantação dessa plataforma, os registros têm crescido de forma consistente. No seu primeiro ano de funcionamento, foram 13.888 notificações (média de 38 por dia). Oito anos depois, esse volume cresceu 34 vezes.
INTERNAÇÕES E ÓBITOS – Um outro fato chama atenção: o resultado desse expressivo número de episódios de brutalidade contra a população pediátrica também causa um número significativo de internações hospitalares e mortes. Entre 2009 e 2014 (último ano com informações disponíveis), houve 35.855 encaminhamentos para hospitalização e 3.296 óbitos. Como geradores, registros de violências física e psicológica ou de tortura.
Os cálculos com base nas informações do Sinan mostram que, em média, 13,5% das notificações desses três tipos de agressão evoluem para hospitalizações. Além disso, no período analisado, a cada dia, pelo menos uma criança ou adolescente morreu vítima de maus tratos. Somente em 2014, ano mais recente com dados específicos sobre esses registros, foram 7.291 internações e 808 óbitos.
“Infelizmente, esses números são apenas a ponta de um enorme iceberg. A subnotificação, ou seja, o total de casos que não chega ao conhecimento das autoridades, é significativa. Isso ocorre por diferentes causas que envolvem desde as famílias até os serviços de saúde e de proteção à infância”, ressalta a presidente da SBP, dra Luciana Rodrigues Silva.
FORMULÁRIO - Dentre os problemas que elenca, está o fato de que a coleta de dados para o Sinan, que ocorre em unidades (postos de saúde, UPAS, hospitais, prontos-socorros do Sistema Único de Saúde) das redes pública e privada, nem sempre é realizada, apesar de existir orientação para que o preenchimento do formulário de notificação seja compulsório.
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Para a presidente da SBP, “é preciso preparar as equipes e criar um ambiente favorável para que possam agir, sem expô-las a retaliações. Por outro lado, o Estado deve desenvolver ações educativas e preventivas contra esse tipo de violência e também garantir rigor na punição aos abusos confirmados”.
Além disso, muitas situações não chegam aos locais de atendimento, pois os agressores não levam as vítimas para receber cuidados médicos, o que geralmente só acontece quando a violência assume proporções graves. Apesar do encaminhamento da notificação não constituir denúncia legal contra os autores da violência contra crianças ou adolescentes, ele é o disparador da linha de cuidados voltadas para pessoas em situação de risco. Da mesma forma, funciona como subsídio para a elaboração de políticas públicas sobre o tema.
PARCERIA - Contra esses problemas, a SBP, firmou parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério dos Direitos Humanos, para buscar soluções efetivas contra esse fenômeno. Um Grupo de Trabalho – formado por técnicos e especialistas das três entidades – está debruçado sobre o tema. Eles analisam as estatísticas, a legislação e as diferentes percepções sobre o problema para desenvolver estratégias específicas.
Para a SBP, o combate e a prevenção à violência contra a criança e ao adolescente são questões prioritárias para o País. Esse engajamento sinaliza o compromisso histórico da especialidade com o tema, inclusive porque foram os pediatras, por meio de suas representações, os primeiros a denunciar os abusos de forma sistemática. Essa ação teve como consequência a inclusão dos casos de violência contra a população de zero a 19 anos como uma das dimensões acompanhadas pelo Sinan.
SEXO - A base de informações acumulada pelo Sinan permite detalhar o perfil dos agredidos, o que serve como subsídios para delinear políticas públicas específicas. Dentre as conclusões que os números permitem está distribuição das vítimas por sexo. Na análise, fica evidente que as crianças e adolescentes do sexo feminino são alvos preferenciais, sem grande variação ao longo dos anos.
Em 2017, foram 53.101 notificações contra meninas, ou seja, 62,2% mais casos do que os registros em garotos (32.169). Em 2009, as ocorrências envolvendo somente as jovens somaram 8.518 (61%). Em 2016, esse índice foi de 59% (41.065 ocorrências). Quanto às faixas etárias, o comportamento dos dados é semelhante, com uma tendência de evolução no tempo e a distribuição proporcional por grupos de idade se mantendo em percentuais parecidos.
IDADES - Pelos dados do Sinan, as populações pediátricas em situação de maior risco à violência são os faixas de 10 a 14 anos (com 20.773 ocorrências em 2017) e de 15 aos 19 anos (44.203 notificações no período). Juntas, elas contabilizam 66.976 casos. Em 2009, esses dois segmentos somaram 9.309. Entre 2009 e 2017, o volume de notificações em jovens de 10 a 19 aumentou sete vezes.
De acordo com o presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP, dr. Marco Antônio Chaves Gama, essa proporção tem diferentes motivos. “Existe uma diferença crucial. Os adolescentes têm mais autonomia para procurar uma unidade de saúde quando são agredidos. Às vezes, a violência ocorre há anos, mas quando criança raramente o indivíduo possui capacidade de buscar auxílio. A violência em crianças pequenas é claramente subnotificada. Quando o adolescente chega a um centro de atendimento especializado, geralmente já passou por anos de trauma”, explica ele.
ESTADOS - Com respeito à distribuição geográfica dos casos, o Sinan mostra que, em números absolutos, as ocorrências desses tipos de violência, em 2017, foram maiores nos seguintes estados: São Paulo (21.639 casos), Minas Gerais (13.325), Rio de Janeiro (7.853), Paraná (7.297) e Rio Grande do Sul (5.254). Respectivamente, esses dados representam 25,3%, 15,6%, 9,2%, 8,5% e 6,1% do total de registros naquele ano.
Porém, a distribuição dos casos por grupo de 100 mil habitantes revela um cenário diferente. Proporcionalmente, em 2017, a violência física foi muito mais comum na região Norte, que possui estados nos três primeiros lugares do ranking nacional: no topo, está Roraima, com 57 registros por 100 mil habitantes; seguido de Acre (50,1) e Tocantins (48,9).
Em proporção por moradores, os indicadores sobre violência psicológica também variam. Lideram os índices de agressão moral os estados do Paraná (18,9 registros para cada grupo de 100 mil habitantes), Minas Gerais (17,3) e Roraima (17). Em situações de tortura, os estados proporcionalmente com maior destaque são: Acre (9,5), Roraima (5,4) e Piauí (4,1).
No período de 2009 a 2017, o acumulado de notificações aponta o seguinte cenário, por estado: São Paulo (99.275), Minas Gerais (68.294), Paraná (36.692), Rio Grande do Sul (35.840) e Rio de Janeiro (33.797). Respectivamente, esses dados representam 21%, 14,4%, 7,7%, 7,6% e 7,1% do total de registros.
MANUAIS - Em 2018, a SBP lançou um novo manual de orientação para pediatras sobre “Protocolo de Abordagem da Criança ou Adolescente Vítima de Violência Doméstica”. O objetivo da publicação é orientar os especialistas no reconhecimento das várias formas de maus-tratos e na adequada condução dessas complexas situações.
Além disso, a entidade também disponibilizou gratuitamente em seu portal uma nova edição do “Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência”. O livro tem o intuito de discutir estratégias para prevenir, identificar e encaminhar situações de risco de violência em nível doméstico, na escola e nos ambientes públicos. O documento tem como público-alvo profissionais que atuam diretamente com a população pediátrica nas áreas da saúde, educação, assistência social, psicologia, segurança, justiça e mídia.
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