“A dor é um quebra-cabeça de muitas peças”

Saiu o 1º capítulo do Consenso sobre Dores Pouco Valorizadas em Crianças Coordenado pelo dr. Claudio Len, professor da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante do Departamento Científico de Reumatologia da Sociedade, a SBP acaba de editar um Consenso Sobre Dores Pouco Valorizadas em Crianças e adolescentes – a cólica no …

Saiu o 1º capítulo do Consenso sobre Dores Pouco Valorizadas em Crianças
Coordenado pelo dr. Claudio Len, professor da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante do Departamento Científico de Reumatologia da Sociedade, a SBP acaba de editar um Consenso Sobre Dores Pouco Valorizadas em Crianças e adolescentes – a cólica no lactente, as dores em erupção dental, na articulação temporomandibular, em membros e conhecidas como “de crescimento”, as que ocorrem em atletas, a abdominal, fibromialgia e a cefaleia/enxaqueca. A publicação já começa a ser disponibilizada no portal da SBP (“Documentos &Informações”, na capa) em capítulos. O primeiro é “Dor abdominal recorrente” e pode ser acessado aqui. Veja, a seguir, a entrevista.

Dr. Claudio, por que a escolha do tema da publicação?

As dores são queixas muito comuns na prática pediátrica e existem Consensos sobre temas muito especializados, mais ligados à conduta hospitalar. Mas há alguns bem frequentes no dia-a-dia de consultórios e ambulatórios, sobre os quais a literatura fala pouco e até foram publicadas opiniões de experts, mas a ideia agora foi agrupá-los, com informação bem atualizada. É uma iniciativa da diretoria da SBP e certamente será muito útil.

Houve um tempo em que se pensava que o bebê não sentia dor. Como esse conhecimento evoluiu?

Os estudos começaram a evoluir a partir do trabalho de Anand, em 1987. Já se pensou também que a criança submetida a algum processo doloroso não se lembraria depois dele e os pais não deveriam se preocupar com isso. Depois, verificou-se inclusive que a memória da dor acaba interferindo no futuro do indivíduo.

Como?

O cérebro da criança tem uma plasticidade muito grande, é moldado. Pessoas que tiveram experiências dolorosas na infância e não foram tratados adequadamente acabam se tornando adultos com limiar de dor mais baixo, que vão ter mais queixas. Isso pode ocorrer com aquelas que passaram por UTI neonatal. Além disso, a criança muda o comportamento. Submetida à dor constante, pode ter comprometimento nos aspectos físicos, emocionais, sociais, com repercussões na escola, por exemplo. Uma enxaqueca, uma dor em membros, uma dor abdominal pode fazer com que a criança se isole, fique mais retraída, evite contato social, e com isso passe a ser sedentária, fique triste e o processo vai se retroalimentando. Temos que cortá-lo, para que a criança saia do ciclo doloroso. A dor traz impacto na qualidade de vida como um todo, não afetando a pessoa apenas na infância. Há um exame, a Ressonância Magnética Funcional, que pode ser feita por pessoas com dores crônicas e sem essas dores. As respostas são bem diferentes. O jeito que o Sistema Nervoso Central responde em crianças e adultos com dor é diferente daqueles sem dor. Há uma resposta neurológica especial.

Existem dados sobre dor?

Em cada uma há uma prevalência média. Mas diria que hoje mais ou menos entre 15 e 25% das consultas no consultório pediátrico são levadas por dor. Nas emergências esse número aumenta.

Muitas vezes as dores estão ligadas a alguma doença, a algum processo inflamatório. Nesse Consenso, procuramos falar de situações em que não há processo inflamatório. Atualmente a dor é vista como um quebra-cabeça de várias causas.

É possível apontar as principais?

Há fatores biológicos, pessoais, como, por exemplo, o limiar da dor de cada indivíduo. Há também famílias com mais queixas de dor, às vezes por influência cultural, em outras pode existir alguma questão genética. Além disso, é grande a influência dos fatores emocionais.

Pessoas que estão passando por estresses emocionais são mais sensíveis à dor. Às vezes, são os pais que estão mais sensíveis à criança e percebem as dores dos filhos. Sabemos que nas dores crônicas, como no caso de dores nos membros ou dores abdominais, são crianças com níveis de ansiedade maiores, alguns casos até de depressão. Também é comum descobrirmos episódios como abusos, negligência, alcoolismo na família, problemas escolares, e situações estressantes. Existem causas que são do próprio organismo da pessoa e outras que vêm do ambiente.

E quanto às doenças graves?

Abordamos no Consenso o fato do pediatra dever saber separar quando uma dor é funcional e quando é orgânica. Cada uma das dores pode ter uma doença mais grave por trás. Antes de iniciar o tratamento, é necessário ter um diagnóstico preciso da causa. Outra questão é que, algumas vezes, as crianças têm algumas doenças crônicas, acabam sendo internadas. Precisamos pensar também em procedimentos que visem minimizar o sofrimento desses pacientes. Não podemos pensar que o paciente que está sendo internado a toda hora vai ser um paciente com menos dor. Pelo contrário, está passando por um processo doloroso e vai sentir mais na próxima internação.

O que salientar sobre a dor funcional?

É quando não se tem uma lesão orgânica, por exemplo, em uma fibromialgia, o músculo está doendo, mas não há uma inflamação. Qualquer exame de um recém-nascido com cólica estará normal. Existem dores que envolvem fatores emocionais que nenhum exame detecta. Se uma criança estiver com enxaqueca e fizer uma ressonância magnética, os resultados serão normais. Além do mais, não existe exame que mostre se está mais forte ou mais fraca, não se consegue medir a dor, vamos pela opinião do paciente. E não é pelo fato de não haver uma doença orgânica diagnosticada que você vai deixar o paciente sofrer, é preciso tratar. Também nos preocupamos, no Consenso, com o excesso de medicação. Fizemos uma revisão do que é mais utilizado, mostrando a eficácia dos tratamentos.

Como se avalia a dor quando o paciente ainda não fala?

Os bebês são capazes de manifestar a dor através da sua expressão, de mudanças na freqüência cardíaca, respiratória, sudorese, alterações de comportamento, entre outras. A comunicação sobre a dor vai variando com o crescimento. Ao longo dos anos, as técnicas de analgesia, como medicamentos, por exemplo, foram se aperfeiçoando, o que contribuiu para uma diminuição da dor sentida pelos pequenos pacientes. Também mudaram a rotina de pediatras e hospitais, melhorando a qualidade do atendimento. Passamos a pensar não apenas na dor já instalada, mas na dor possível.

O sr. se refere à prevenção?

Sim, o objetivo do pediatra é evitar que a criança tenha dor. Muitos analgésicos e antiinflamatórios têm efeitos adversos, que precisamos evitar ao máximo. A medicação utilizada para prevenir um quadro doloroso com orientação certamente será menos prejudicial que o uso contínuo de analgésicos e antiinflamatórios. Nosso dever é tratar do paciente não apenas na crise, mas na inter-crise, e tentar evitar que venha a ter dor, um estresse também para a família. Muitas vezes isso é possível com mudanças de hábitos.

Pode dar um exemplo?

Se você sabe que uma criança tem um histórico familiar importante de enxaqueca, e está tendo hábitos de vida inadequados, o pediatra pode tentar mudar isso, o que fará com que diminua a freqüência dos futuros episódios dolorosos. O pediatra tem influência sobre a família e deve orientá-la.

Como foi o processo de elaboração do Consenso?

Foram convidados especialistas habituados com o tratamento de crianças e adolescentes com dor, todos ligados a universidades e hospitais de referência. Fizemos reuniões presenciais e virtuais e os participantes buscaram as melhores evidências científicas, em todas as etapas. Os textos foram revisados por mim e por pediatras indicados pela diretoria da entidade e disponibilizados, em junho, no portal da sociedade para consulta aos colegas. Recebemos 68 contribuições, entre elogios, dúvidas e sugestões.

Quem são os demais autores?

Os drs. Ana Teresa Leslie, Silvia Barbosa, Renata Waksman, Clovis Artur Almeida Silva, Maria Teresa Terreri, Liete Zvir, Marcelo Rodrigues, Melissa Fraga e Ana Lúcia de Sá Pinto, Eliete Chiconelli Faria, Adriana Mazzoni e Ruth Guinsburg.

“Pessoas que tiveram experiências dolorosas na infância e não foram tratados adequadamente acabam se tornando adultos com limiar de dor mais baixo”

A entrevista com dr. Claudio Len está nas págs. 12 e 13 da revista SBP Notícias. Clique aqui e veja a revista na íntegra.