O sofrimento do povo do Rio de Janeiro deixa o País cara a cara com a insegurança sanitária em que vivem suas populações. Não há como negar o desleixo com que se administra a saúde da gente brasileira há muito tempo. Essa não é a primeira tragédia nem será a última. Infelizmente. As condições para outros surtos epidêmicos de dengue estão presentes nos demais estados. É torcer para que não aconteçam. A população não merece.
Os gestores públicos são mestres em deslocar para outrem a responsabilidade que lhes cabe. Não fazem outra coisa. Exercitam o cinismo e a hipocrisia. Sentem-se inatingíveis porque aprenderam a se omitir impunemente das atribuições que lhes são próprias. Sabem que lidam com a saúde da população menos favorecida, com menor chance de educação de qualidade, sem acesso ao direito, sem opção por outra alternativa de atendimento fora do inferno das unidades públicas a que estão condenadas pela pobreza. Por isso, verbalizam sandices com desenvoltura. Diante de catástrofes anunciadas, inventam justificativas que não traduzem a verdade. Formulam soluções que não são técnicas. São pirotécnicas.
Como a dengue tornou-se doença grave para crianças, matando-as em grande número, os gestores atribuem a novidade epidemiológica à falta de pediatras no Rio de Janeiro. Aí já não se trata mais de equívoco. É distorção inescrupulosa dos fatos. O Rio de Janeiro conta com 7.000 colegas segundo informação da SOPERJ. Vale dizer, 43 pediatras por 100.000 habitantes. O dobro da proporção atual existente nos países da Europa! Buscar pediatras em outros estados a pretexto de suprir insuficiência local é mera pirotecnia. Chantagear os colegas do Rio de Janeiro por meio da anunciada contratação de médicos cubanos é confundir o Corcovado com Sierra Maestra e Copacabana com Varadero. Não dá para levar a sério uma conduta de desrespeito quando o povo, privado de seus direitos, sofre injustificável tragédia.
A Sociedade Brasileira de Pediatria são as suas entidades filiadas. Representa o movimento associativo dos pediatras de todo o País. Não é governamental nem partidária. É independente. Tem compromisso com a saúde da criança, do adolescente e com o exercício profissional da pediatria. É eminentemente científica e fortemente social. Orgulha-se de seus 98 anos de história marcada pela coerência com os objetivos que persegue, alicerce da sólida unidade nacional que a caracteriza.
A atuação da SOPERJ durante a epidemia de dengue é exemplar. Demonstra o empenho da pediatria brasileira na hora de enfrentar o terrível desafio. A diretoria da SOPERJ, sob a forte liderança e inesgotável dedicação de sua presidente, a nossa Fátima Coutinho, está na vanguarda das ações que nos cabem nesses momentos. Participa de discussões estratégicas com as instâncias do poder público envolvidas, promove a capacitação de pediatras para aprimorar o desempenho do atendimento às crianças, fornece sugestões de conteúdo temático para a qualificação de processos seletivos destinados à contratação de pediatras do Rio de Janeiro, defende veementemente a remuneração digna do exercício pediátrico, orienta a opinião pública, subsidia os meios de comunicação com a informação científica mais atual, refuta inverdades forjadas por gestores, reage a insinuações depreciativas do trabalho pediátrico. Mas, acima de tudo, investe energia plena, até o limite da exaustão, para cumprir o compromisso institucional maior e inegociável em defesa das vítimas da tragédia. Estas são as ações que configuram o papel das entidades pediátricas estaduais, no âmbito de sua atuação como instituições da sociedade civil, em sintonia com as políticas definidas nos colegiados da SBP.
Algumas oportunas constatações emergem das profundezas da crise do Rio de Janeiro para confirmar argumentos e propostas da SBP ao longo dos últimos anos. São as seguintes:
1 – Na hora da verdade, os gestores reconheceram a desqualificação do PSF para diagnóstico, tratamento e prevenção dos agravos à saúde da criança e do adolescente. Buscam pediatras. Importam pediatras. Imploram pediatras. Doravante não terão mais argumentos para negar à infância e à adolescência o direito ao atendimento pediátrico.
2 – No auge do caos, a opinião pública tomou conhecimento do salário indecoroso que o SUS paga ao médico, particularmente ao pediatra. A evasão dos profissionais que trabalham na rede de saúde pública mostrou ser muito maior do que se imaginava. A população passa a entender a razão da precariedade da assistência médica que lhe é reservada pelos sucessivos governos. É nossa aliada para exercermos as pressões legítimas que levem os gestores a reverter o danoso quadro que criaram.
3 – O único ente verdadeiro em toda essa história é a sociedade civil. Paga impostos, produz ativamente e arca com a conseqüência do descaso indisfarçável das autoridades que têm o dever, não cumprido, de investir orçamento, decisão, coragem e ousadia na proteção dos interesses coletivos. Nossa identificação como entidade da sociedade civil é marca institucional a ser acentuada cada vez mais.
4 – O alegado desinteresse dos estudantes de medicina pela carreira pediátrica não procede. Não se trata de desinteresse. A sociedade brasileira é baseada na lógica capitalista do livre mercado. Quem regula todas as relações da sociedade é a lei da oferta e da procura. É o princípio do laissez faire, do laissez aller que sustenta o modelo econômico neoliberal da atualidade. O equilíbrio entre oferta e demanda deve ser estabelecido sem intervenções do Estado. É o que acontece com todas as atividades profissionais, inclusive com a pediatria. O Jornal Nacional (TV Globo), na edição de 03/04, chamou a atenção para o fato de que a opção pela pediatria na década de 1980 era aproximadamente a de 25% dos estudantes de medicina, mantendo-se em 7% atualmente. A informação não pode ser analisada tendo por base apenas estes percentuais. De fato, a lei da oferta e da procura permite entender melhor o que está por trás dos números apresentados. Para tanto, é imprescindível acompanhar a taxa de fertilidade no Brasil. Na década de 1980, era de 5,5. Vem declinando regularmente. Atingiu o índice de 1,8 em 2007. Assim, a opção dos estudantes de medicina pela pediatria diminuiu de 70% em relação ao que era na década citada, enquanto a taxa de fertilidade sofreu redução de 68% no mesmo período. Ou seja, os dois indicadores revelam percentuais de declínio bem equivalentes e, por certo, estampam o equilíbrio naturalmente mantido pelas leis do mercado. Não por outro motivo, a relação de 20 pediatras por 100.000 habitantes no Brasil de hoje equipara-se à média do mesmo indicador nos países da Europa. Por seu turno, a taxa de fertilidade que atingimos está próxima à dos países europeus. Mesma lógica, mesmo princípio, mesma lei de regulação, igual tendência ao equilíbrio. Seria absurdo esperar o mesmo percentual de opções pediátricas da década de 1980 para a demanda de 2008. Haveria imensa população de pediatras disponíveis como exército de reserva a ser facilmente escravizado pelos interesses do capital. Felizmente não acontece. O importante é reformular o perfil do pediatra brasileiro para torná-lo mais afinado com a demanda de uma epidemiologia cambiante, a requerer um componente educativo e preventivo cada vez mais valorizado pela sociedade a que serve. Em síntese, não há desinteresse dos estudantes de medicina pela pediatria, nem há falta de pediatras.
Nossa profissão tem precioso valor reconhecido pela sociedade. O que decepciona e às vezes desanima é a falta de respeito que os gestores manifestam pelos cuidadores da infância e da adolescência, cujo compromisso social ainda os faz crer na validade de trabalhar para o SUS. Mas, o limite de tolerância existe. Um SUS que não respeita o pediatra não o merece em seus quadros.
A epidemia de dengue escancara as causas da crise do sistema público de saúde. Reforça, por outro lado, a oportunidade e a urgência de corrigir os erros que vieram à luz. A ação é inadiável. Na saúde pública verdadeira não se pode admitir oportunidade perdida.
Dioclécio Campos Júnior
Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
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