Afeto para o feto

DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR Médico, professor titular aposentado da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium ([email protected]) Publicação:26/08/2012 O ser humano é concebido sem nenhum direito de escolha. Impõe-se-lhe a vida. Pura e simplesmente. Não tem conhecimento prévio do que o espera aqui fora. Nem lá dentro. É …



DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, professor titular aposentado da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium ([email protected])

Publicação:26/08/2012

O ser humano é concebido sem nenhum direito de escolha. Impõe-se-lhe a vida. Pura e simplesmente. Não tem conhecimento prévio do que o espera aqui fora. Nem lá dentro. É obrigado a viver como embrião e feto no útero materno para depois ser lançado ao útero social, às vezes tenebroso.

Durante os nove meses em que se molda no ambiente uterino, não conta com a atenção dos circunstantes, um requisito social para boa parte do êxito que lhe compete alcançar na pesada metamorfose a ser cumprida em tão curto espaço de tempo. É visto como mero pacote de surpresas genéticas que se desembrulha ao nascimento. Até lá, tem, por sublime referência, a mãe, sede orgânica da fonte placentária que o alimenta e das emanações afetivas de uma alma, potencialmente sensível, a ser conquistada pouco a pouco. Ninguém melhor para fornecer-lhe tudo de que precisa, a fim de vencer etapa existencial eivada de complexidade, única no tempo, singular no espaço. A maternidade é, pelo fato mesmo, o momento ontogenético de profundo significado na história da espécie, a despeito da banalização de que sempre foi alvo.

De ovo a embrião, e de embrião a feto, o novo ser humano vai ganhando forma e conteúdo nas recônditas paragens do sagrado ventre materno. Tecidos, órgãos, sistemas anatômicos emergem em delicado cronograma fisiológico, ungidos pela sinalização genética subjacente aos contornos, feições e atributos originais do corpo fetal, minúsculo na dimensão física, imenso nas potencialidades. O cérebro avulta na proporção grandiosa de um projeto fascinante. Entre o sexto e o nono meses da gestação, mais do que em qualquer outra fase da vida, o órgão síntese da evolução humana cresce a uma velocidade estonteante, aumentando três gramas por dia. No mesmo período, o aparelho auditivo já está pronto, funcionando. A voz materna é o estímulo sonoro mais presente no espaço matricial que alberga o dinamismo construtivo da gravidez. Nenhum outro se lhe compara. Costuma ser a fina melodia curtida pelo nascituro.

A energia estruturante do feto depende das peculiaridades de seu DNA. Requer, no entanto, estreita interação com fatores favoráveis do meio ambiente no qual se desenvolve, fenômeno essencial à adequada expressão dos genes. É o mesmo princípio científico estabelecido para o equilíbrio da vida extrauterina, principalmente na primeira infância. A ONU já enfatiza, desde 1972, a inclusão de componentes sociais no conceito de meio ambiente. Não deve ficar restrito a elementos físicos, químicos e biológicos. O afeto é, pois, ingrediente ecológico primordial na sustentabilidade da vida humana. Severdadeiro,éincompatível com a ansiedade.

A atmosfera uterina reproduz o impacto do meio ambiente sobre a gestante. Pode causar estragos precoces irrecuperáveis. Pelo desafio de tantas transformações vivenciadas, a vida fetal supõe profusão afetiva capaz de evitar os efeitos prejudiciais de desequilíbrios que afetem seu microuniverso. Mesmo com perfis genéticos diferentes, mãe e feto são indissociáveis. Assim, a única via de acesso ao mundo fetal é o organismo materno.

O feto, mais do que ninguém, precisa de muito afeto para a difícil travessia em que se encontra mergulhado. A receita mais autêntica para um ente que está a se formar é a sua proteção contra o estresse. Configura direito que não se lhe pode negar. Situações emocionais tensas, ansiosas e mentalmente traumáticas, enfrentadas pela gestante, acompanham-se da secreção de substâncias dotadas de efeitos tóxicos que passam para o organismo fetal. Expõem-no a riscos concernentes à sutileza de sua formação, predispondo-o a diversas doenças, inclusive no campo da atividade cerebral, que repercutirão ao longo da vida.

Nada chega ao feto que não seja pela porta maternal. A sociedade não reconhece a clareza de tal postulado. Infelizmente, a dimensão grandiosa do papel desempenhado pela mulher no processo delicado de geração da vida escapa à percepção da maioria das pessoas. Não basta garantir à gestante os nutrientes que transfere, via placenta, ao futuro recém-nascido. Alicerces que fundamentam a ontogênese vão muito além. Supõem ambiente uterino seguro, com o mínimo de produtos tóxicos advindos do estresse sofrido pela mãe. O bem-estar físico, mental e social do feto, pressuposto da dignidade humana, somente lhe será propiciado pelo apoio irrestrito à gestante e o mais terno respeito à maternidade — dever de todos. A gravidez sem estresse é o indicador confiável do compromisso social com a vida humana. É afeto para o feto.