Em entrevista, a Presidente da SBP esclarece questões relacionada ao diagnóstico e ao tratamento da disforia de gênero


A presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), dra Luciana Rodrigues Silva, defendeu a importância do pediatra enquanto o primeiro profissional a identificar a disforia de gênero, já na infância. Em entrevista publicada no jornal A Gazeta, de Vitória (ES), ela afirma que esse especialista é, portanto, o responsável por abrir as portas para a atuação de uma equipe multidisciplinar que definirá as estratégias a serem adotadas.

Na reportagem, dra Luciana reiterou que a preocupação principal é garantir o acolhimento integral de crianças e adolescentes na rede de saúde, independentemente de suas diferenças. Foi com esse objetivo que a SBP lançou um documento científico para auxiliar os pediatras na identificação e na atuação diante de casos de disforia de gênero, condição caracterizada pela divergência entre o sexo biológico e a identidade de gênero do indivíduo.  

O guia, elaborado pelo Departamento Científico de Adolescência da SBP, foi lançado no dia 20 de outubro. O texto ressalta que a construção da identidade de gênero começa entre os dois e três anos de idade. Já a partir dos seis anos, as crianças passam a ter consciência de seu gênero, assim como de sua permanência.

Além disso, o documento também aponta características e atitudes que devem ser observadas para identificar a disforia de gênero. Entre eles, estão o forte desejo de pertencer a outro gênero; a opção pela utilização de roupas e de brinquedos comumente preferidos pelo gênero oposto; a forte preferência por papéis transgêneros em brincadeiras; a opção por brincar com pares de outro gênero; desgosto e desconforto com a própria anatomia sexual e o desejo intenso por características sexuais compatíveis com o sexo oposto.

Para dra Luciana Rodrigues, a discussão acerca da transexualidade foi ainda mais acentuada após a novela “A Força do Querer”, na qual a personagem Ivana passou por um processo de redefinição de nome e de gênero. Nesse contexto, a pediatra ressalta a importância da preparação dos profissionais para lidarem com crianças que, além de sofrerem por se sentirem diferentes dos demais, também são alvos mais fáceis do bullying.

Do mesmo modo, ela abordou na entrevista o papel dos pais nesse processo e da necessidade de atenção às alterações sistemáticas de comportamentos. Confira, a seguir, a íntegra do texto publicado em A Gazeta:

A Gazeta: Como a SBP define a disforia de gênero em crianças?

Dra Luciana: Essa é uma questão que pode acontecer com a criança na fase escolar e na adolescência. Ela é traduzida como um desconforto que o indivíduo tem com seu sexo biológico. A criança tem preferência por brinquedos e roupas que são preferidas pelo outro gênero, ela não se integra com outras crianças do mesmo sexo. Cerca de 80% das crianças que apresentam a disforia de gênero na idade escolar voltam a se sentir confortáveis com o sexo com o qual nasceram. Mas quando esse desconforto começa a existir a partir da adolescência o retorno ao sexo biológico fica mais difícil. O pediatra é o único médico que deve assistir crianças e adolescentes. Ele os atende desde o nascimento até o final da adolescência. Então, ele precisa estar preparado para quando as mães e os pais levarem essa questão para dentro dos consultórios. O pediatra não trata só de dar antibióticos para a criança que tem pneumonia. Ele acolhe a criança e sua família, orienta o desenvolvimento da criança e os fatores de risco para crianças e adolescentes. Esse papel de atenção ao desenvolvimento é do pediatra: desde a vacina até alimentação e o alerta para os riscos de doenças sexualmente transmissíveis em adolescentes. Trata-se de uma orientação para a vida. Por isso, o pediatra tem que ficar preparado para entender que essa é uma situação que pode chegar ao consultório e que pode requerer tempo e conhecimento para um diálogo tanto com a criança, quanto com a família. Quando for identificado um desconforto persistente, que a criança ou o adolescente vem mantendo alterações comportamentais, ele será capaz de indicar o acompanhamento de psicólogos e de outros profissionais que possam acompanhar os casos. Então, o pediatra vai ser o primeiro profissional que irá identificar essa situação.

A Gazeta: Os pediatras estão preparados para lidar com esse tema nos consultórios?

Dra Luciana: Essa é uma questão recente, mas os pediatras já estão começando a ficar mais atentos, mas ainda há dúvidas sobre como lidar com o assunto. Por conta disso, a Sociedade Brasileira de Pediatria decidiu elaborar essa cartilha, que traz todo o detalhamento do que ocorre nessa situação e como lidar com ela. Estamos atentos às questões atuais e resolvemos convocar um grande grupo de especialistas no tema para escrever esse documento. Eu acho que existem problemas mais graves e urgentes na área pediátrica do que este, é claro. Deveríamos, por exemplo, ter um pediatra disponível em todas as estruturas de atenção primária, secundária e terciária, onde são atendidas crianças e adolescentes. Sabemos que deveria haver um número maior de leitos hospitalares e que ainda existe uma falta de pediatras em muitos serviços. Também notamos que os gestores públicos não estão atentos para a importância do pediatra para a criança e sua família na prevenção e no tratamento de doenças. Mas essa questão da disforia de gênero tomou proporções grandes na mídia, sobretudo após a novela que acabou recentemente (“A Força do Querer”, da TV Globo), que falou sobre o caso de um transexual. Mas acho que houve algumas abordagens muito inadequadas. A autoadministração de hormônios, por exemplo, que era retratada na novela, é absolutamente inadequada e contraindicada. O adolescente que sente desconforto com seu sexo biológico deve pensar nessas questões, bem como na mudança de sexo após a chegada da maturidade, pois a adolescência é uma fase de muitas transformações. Então, a recomendação geral é que haja um acompanhamento pediátrico e psicológico para melhores orientações.

A Gazeta: Como você avalia a repercussão que o tema vem tomando?

Dra Luciana: Acho que a disforia de gênero, a transexualidade sempre existiu, mas era mascarada e agora há um grande foco em torno da questão. Muitas vezes, pela falta de uma análise crítica, esse foco excessivo pode acabar distorcendo a realidade. Passa-se a pensar que isso é algo que tem que ser tratado de maneira comum e banal, quando na verdade não é. As crianças e os adolescentes que lidam com a disforia de gênero sofrem muito com essa questão. Não se trata de uma bobagem. É uma questão que exige acompanhamento porque são indivíduos que se sentem deslocados, diferentes e que precisam ser acolhidos e respeitados. Eles geralmente sofrem bullying de outros colegas, o que amplia ainda mais o sofrimento. Normalmente, este sofrimento psicológico pode levar a ansiedade, a alterações do sono e a mudanças de comportamento.

A Gazeta: Por que a Sociedade Brasileira de Pediatria decidiu entrar nessa discussão?

Dra Luciana: Achamos que é uma coisa que está tendo muito foco e como estamos preocupados com crianças e adolescentes, precisamos atualizar os pediatras em relação aos temas que estão sendo debatidos. Lançamos outras cartilhas sobre o uso excessivo da mídia digital, a importância da atividade física e também sobre problemas com o álcool envolvendo adolescentes. O objetivo é atualizar os profissionais sobre todas essas discussões.

A Gazeta: Os pediatras poderiam também indicar ou controlar o uso de hormônios no caso de adolescentes que desejam alterar suas características biológicas?

Dra Luciana:  Não. Isso só pode ser feito por um endocrinologista e também não pode ser encarado de maneira banal. A decisão parte de um atendimento individualizado e junto a um acompanhamento multidisciplinar. Isso ocorre nos casos de adolescentes que mantêm a disforia e o desejo de mudar de gênero ao longo do tempo. Elas são encaminhadas para serviços de referência, onde há um psiquiatra, um endocrinologista e toda uma equipe para lidar com essas situações, analisando suas necessidades de modo individual.

A Gazeta: Como os pais devem agir ao perceberem a possibilidade de que seus filhos tenham a disforia de gênero?

Dra Luciana:  Acima de tudo, os pais devem estar atentos aos sinais dados por seus filhos e, ao invés de não falar sobre o assunto, conversarem com o pediatra. Não é preciso entrar em desespero e nem ignorar a situação, pois teremos que aprender a conviver com as diferenças. Essa situação pode requerer um trabalho psicológico que envolva não só a criança ou o adolescente, mas também os pais. Dependendo da gravidade da questão, é preciso colocar toda a família em acompanhamento, já que os casos não são iguais. O que a gente precisa analisar é se essa vontade da criança começa a ser repetida de maneira sistemática. Caso isso aconteça, deve-se tratar a questão com naturalidade, mas sempre com atenção. Para perceberem os pais precisam manter a proximidade com seus filhos. Diante da percepção dessa vontade que se repete, devem começar a procurar ajuda.

A Gazeta: Recentemente a entidade também lançou uma cartilha sobre o bullying. Crianças com disforia de gênero estão mais sujeitas ao preconceito?

Dra Luciana:  Com certeza crianças que apresentam disforia de gênero são mais alvos de bullying do que outras crianças, o que torna o seu sofrimento ainda maior. É o mesmo que acontece com crianças acima do peso ou com alguma deficiência. O que acontece é que as pessoas aprendem desde muito cedo a serem intolerantes e a não aceitarem as diferenças. Cabe aos pais, também, a função de ensinar desde cedo as crianças a conviverem com essas diferenças e a aceitar o outro. Essa mensagem é fundamental. (Com informações de A Gazeta)