DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
É médico, professor titular aposentado da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria e representante da SBP no Global PediatricEducation Consortium. E-mail: [email protected]
Publicação: 23/06/2012 04:00
Não dá mais para segurar. A sociedade precisa saber que, de uma maneira geral, os gestores de saúde do país não valorizam a criança. Relegam seus cuidadores. Desrespeitam a prioridade que lhe confere o artigo 227 da Constituição. Banalizam a ciência que comprova a complexidade dos fenômenos do crescimento e desenvolvimento do ser humano.
Subestimam a importância dos cuidados qualificados para crianças, sem os quais nenhuma delas realizará as originalidades inovadoras que lhes são próprias. Ignoram a fase de mudanças biológicas em que se dá, em caráter insubstituível, a estruturação do cérebro, com todos os desdobramentos psicossomáticos de cujo equilíbrio depende a capacidade mental das pessoas. Não conhecem as informações comprobatórias de que os bebês nascidos hoje poderão viver mais de 100 anos se criados em condições indispensáveis à travessia radiosa da primeira infância.
Desprezam as evidências científicas segundo as quais a maior parte das enfermidades do adulto tem início no ciclo de vida infantil. Não atuam como gestores autênticos. Viram as costas para a estratégia maior do setor, a prevenção das doenças, que supõe investimento prioritário na saúde da criança. Possuem mentalidade anterior a 1722, quando o suíço ThéodoreZwinger mostrou que o organismo infantil reage aos agentes etiológicos das enfermidades de forma bem diferente que o do adulto.
Nasceu daí a pediatria, único domínio do conhecimento médico especializado na faixa etária profundamente diferenciada pelos fenômenos do crescimento e desenvolvimento que lhe conferem absoluta especificidade. Até então, a criança era vista e tratada como mera miniatura do adulto. Infelizmente, a maioria dos gestores ainda pensa e age dessa maneira, laborando no atraso que tem lesado os direitos da infância e da adolescência no Brasil.
Posturas desfavoráveis à criança são ilimitadas. Não há política pública de saúde que a considere com o destaque merecido graças às dinâmicas e cambiantes peculiaridades neurobiopsicossociais inerentes. O descaso para com o ente uno e indiviso que atravessa os decisivos anos de vida é patente. A qualidade dos cuidados que lhe são prestados é pífia, quase nenhuma. O reconhecimento da quintessência dos cuidadores inexiste. As provas do desapreço sobejam.
Há exemplos de sobra. Alguns bem contundentes. De fato, criança, no conceito apropriado à sua magnitude humana, tem sido excluída sistematicamente das políticas públicas de saúde. Permanece no confinamento da dimensão miniaturizada. Nem todas têm acesso aos médicos preparados para resolver suas demandas. Os gestores justificam-se de forma inverídica. Dizem que pediatria está em extinção. Não é verdade. Só há falta de pediatras para as camadas desfavorecidas da população.
Os dirigentes entendem que esse atendimento diferenciado é supérfluo para as crianças pobres. Não o promovem. Para eles, qualquer profissional é considerado apto a cuidar das miniaturas de adultos desse segmento populacional. O Programa de Saúde da Família, PSF, não inclui atendimento pediátrico. Crianças são assistidas por cuidadores improvisados. Na sala de parto, prospera o mesmo atraso conceitual. A remuneração paga pelo SUS ao obstetra é praticamente o dobro da que é paga ao pediatra que presta assistência especializada ao recém-nascido. Os gestores consideram que o recém-nato, por ser miniatura, vale quase nada. Logo, o pediatra vale igual.
Outra vergonhosa prova de desrespeito à criança é a atitude de tais gerentes públicos, contrária ao aumento da qualificação pediátrica no país. O Brasil é o último que segue formando pediatras em programas de treinamento cuja duração é de apenas dois anos. Na maioria dos países, a especialização dura de três a cinco anos. Na América Latina, a Argentina adotou duração de quatro anos; e os demais, de três. Nossos gestores querem é a extinção da pediatria.
Há cinco anos, a Sociedade Brasileira de Pediatria luta com a Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação para aprovar programa de formação do pediatra em três anos. A objeção à mudança é dissimulada. Os argumentos dos que divergem da iniciativa são insustentáveis. Não têm compromisso com a qualidade da assistência à criança. As manobras são nada éticas. A tal ponto de o processo já haver desaparecido daquele órgão. Um escândalo. Há que esclarecer a opinião pública. É hora de agir. Como o diz Gonzaguinha: “Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder o que não dá mais pra ocultar… explode, coração!”