Médico, pesquisador associado da UnB, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria ([email protected])
Publicação: 15/01/2012
A economia brasileira cresce como nunca, mas a desigualdade social resta como sempre. O ranço dessa injustiça parece ser parte estruturante do modelo de sociedade fundado pelo colonialismo lusitano em terras tupiniquins. De então para cá, passaram-se séculos. Centenas de réveillons sucederam-se em ritmos festivos, sinalizando a chegada de um ano-novo. Lampejos quase frenéticos sempre anunciaram paz, saúde e felicidade.
O rito de passagem de um módulo de 365 dias para outro de igual tamanho é celebrado na magia de misticismo envolvente. Vira-se a página do calendário, porém os alegres anseios de mudança não resistem à paisagem da realidade. A paz aspirada esfuma-se no vendaval da violência, que só faz aumentar. O Brasil é hoje o país com o maior número de homicídios no mundo. Ano após ano, a despeito da riqueza dos belos réveillons que os separam, o estigma hediondo acentua-se. O sonho da saúde desejada tampouco acontece. Não se encaixa no pesadelo das morbidades incessantes. Mais da metade dos brasileiros atingiu a situação de sobrepeso e 15% da população são obesos. Os desdobramentos nosológicos para o ano entrante são mais assustadores do que animadores. A felicidade que se augura fraternalmente ao próximo esbarra nas frustrações diárias que se agravam, tornando-a ilusória. Só poderá ser sentida se inspirada na respeitosa reverência expressa no verso do cubano Sílvio Rodriguez: “Sou feliz, sou um homem feliz e quero que me perdoem, por este dia, os mortos da minha felicidade”. Que, aliás, não são poucos.
Por seu lado, entra ano, sai ano e a infância brasileira segue desprezada. Como não vota nem desenvolve atividade produtiva, nada vale. É segmento populacional pouco respeitado pelos projetos de governo. Aparece, quando muito, nos discursos políticos cheios de retórica e vazios de consistência. Somente obras gigantescas, algumas faraônicas, movimentam interesses econômicos que sustentam a lógica do poder dominante. Na maioria delas, os benefícios para a população são meros pretextos a justificarem os elevados dispêndios de dotações públicas. Nenhuma delas projeta qualquer atenção às demandas da primeira infância, a despeito de serem consideradas internacionalmente como verdades científicas e nacionalmente como prioridades constitucionais. Fala-se muito na importância de creches e pré-escolas de qualidade, em tempo integral, para as crianças do país. No entanto, não se vislumbra uma iniciativa concreta que permita reverter, a curto prazo, a enorme dívida social com o ciclo de vida único durante o qual cresce e se forma o futuro cidadão. Ao contrário, o modelo econômico do capitalismo consumista desmonta a estrutura familiar e retira prematuramente do berço afetivo as novas gerações, relegando-as à própria sorte em ambientes desqualificados, desprovidos das condições mínimas de estímulo cognitivo e de afeto, sem os quais o projeto de cidadania igualitária não passará de utopia que nenhum ano-novo realizará.
Uma das conjecturas que mais se exalta atualmente é a do legado da Copa. Espera-se que o turbilhão de dinheiro público investido em estádios, aeroportos, redes hoteleiras, transporte coletivo possa gerar grande ganho em qualidade de vida para o povo brasileiro como resultado positivo do megaevento internacional que ocorrerá em território pátrio. Mais uma vez, coisa alguma existe, no pacote das vultosas obras já em andamento, que traga benefício palpável para a infância. A presença da criança na estrutura orçamentária do país é apenas simbólica ou fictícia.
O legado para essa faixa populacional não decorrerá da Copa de 2014. Nem brotará espontaneamente em 2012. Supõe medidas enérgicas. Não impossíveis, mas produto da coragem dos dirigentes. Duas delas são inadiáveis. A primeira, exigir das empresas participantes de editais de licitação pública a comprovação de que pertencem à categoria de empresas cidadãs. Ou seja, já expandiram para seis meses a duração da licença-maternidade garantida às suas trabalhadoras. A segunda, incluir nos contratos firmados entre governo e empresas privadas uma contrapartida de construção, por conta da empresa signatária, de unidades de creche padrão, em locais estratégicos e em número proporcional ao volume do investimento público empenhado para execução de cada obra ou serviço licitados pela União, estado ou município.
O ano começa. O caminho existe. A infância não só o merece, mas também tem todo o direito. Que em 2012 possa surgir o verdadeiro legado capaz de transformar o Brasil.
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