DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium ([email protected])
Nosso país quer avançar bem na economia ignorando as mazelas sociais decorrentes. Injusto. A pior delas é o descaso com a criança. A infância está descuidada. Pai e mãe fora de casa geram renda, mas deixam os filhos à mercê do acaso. Não há creches suficientes nem cuidadores qualificados para operá-las. O mundo mudou. A realidade é outra. Transformações profundas resultaram numa sociedade que não realiza os melhores sonhos da espécie.
Progressos materiais são inegáveis, embora não assegurados a todas as faixas da população. Trazem conforto que facilita o bem-estar cotidiano. Todavia, não produzem o aperfeiçoamento das relações entre as pessoas, expresso nos princípios éticos, na cultura do afeto, no fim do preconceito, no abandono de toda e qualquer forma de violência. A iniquidade só cresce, deixando marcas indeléveis na história.
Quem paga mais caro pelas mudanças havidas é o ser em formação. Perdas que deterioram os primores do mundo infantil são flagrantes. Família deixou de ser ninho afetivo feito para acolher, no aconchego, na segurança requerida, na estimulação encantadora, os infantes que repovoam a terra. Converteu-se em microempresa, atuando na lógica do mercado, não mais na missão edificante dos valores humanos que lhe davam nobre significado.
Lares estão rarefeitos na atmosfera do fundamentalismo consumista. Já não passam de efêmeros dormitórios em que casais unidos na materialidade se encontram cada vez menos. Filhos veem os pais ocasionalmente. Pouco amparo amoroso lhes é dispensado. Sobrevivem em meio a desencontros frustrantes que lhes agridem a alma. Dotados da essência cerebral capaz de sediar o ato de pensar, ficam restritos à dimensão digital, mecanizados em gênero, número e grau.
Por mais que se comprove a riqueza das virtudes que desabrocham do crescimento e desenvolvimento do ser humano em ambiente sadio e saudável, as comunidades não se dão conta dos erros que cometem. A sociedade brasileira não desperta para os prejuízos que vem causando à infância no país. Não valoriza a criança. Nega-lhe o direito de acesso ao afeto pleno, à ternura ilimitada e ao carinho imaterial, sem os quais não se pode falar em educação, somente em escolarização que ignora potenciais e reprime criatividade.
No Brasil, nascem anualmente cerca de 3 milhões de brasileiros. Se a creche é hoje o espaço destinado aos três primeiros anos de vida, há, no país, 9 milhões de usuários potenciais. Somente 17% deles têm acesso a esse recurso indispensável à cidadania. A presidente Dilma prometeu inaugurar 6 mil unidades até 2014. Além de insuficientes em número, jamais se menciona a sua qualidade como real garantia do crescimento físico e desenvolvimento cerebral da criança. Prioriza-se a construção do imóvel. Não se fala do nível educacional dos recursos humanos a serem encarregados de tão delicada missão.
Até o momento, do total prometido, apenas 400 foram inauguradas. Se os estádios gigantescos da Copa estão construídos, por que imóveis de pequeno porte e maior premência não saem do papel? As novas gerações são lesadas em direitos cruciais. Governos e sociedade são aliados na prática da grave negligência responsável pelas desigualdades que dizem combater; pela criminalidade, cujas causas ocultam; pelo baixo desempenho profissional, que não querem resolver; e pelas enfermidades do adulto, que grassam por falta de prevenção na idade adequada. O valor da infância resta nenhum.
A Sociedade Brasileira de Pediatria elaborou importante projeto de lei sobre o assunto. Concebe o Programa Nacional de Educação Infantil para financiar construção, reformas e funcionamento de creches em todo o país. Aprovado no Senado em 2010, tramita na Câmara. O parecer do relator é pela rejeição. Lamentável postura que agride o sujeito de direito incapaz de se defender. A entidade pediátrica propõe também profissionalizar o cuidador da primeira infância, a ser graduado em curso oferecido pelas universidades, com duração de dois anos, tendo como requisito a conclusão do ensino médio. É a forma de assegurar o qualificado nível que a assistência à tenra idade está longe de possuir.
Excelentíssima presidente Dilma, crie, por favor, a profissão de cuidador da primeira infância. Alguém bem formado, bem remunerado, para trabalhar em todas as creches do país, inclusive nas 6 mil que a senhora se comprometeu a construir. O padrão Fifa é indispensável. Todas as crianças têm direito ao que há de melhor. A senhora sabe disso!
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