Médico, professor titular de pediatria da UnB, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
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Medicina é a profissão cuja sobrevivência está mais ameaçada pelo rolo compressor da tecnologia. Desfigura-se a olhos vistos. Perde substância. Deixa-se impregnar pela onda de automação avassaladora. Não resiste ao fascínio da era digital. Virtualiza-se. Sucumbe ao esquartejamento científico. Fragmenta-se. Esvazia-se na essência. Desintegra-se na prática.
O exercício da medicina verdadeira é indissociável de uma relação humana benfazeja entre o profissional e o paciente. Sem ela não há lugar para a recuperação plena da saúde. Tudo o mais é complementar. Não bastam equipamentos complexos, remédios miraculosos ou cirurgias fantásticas. Muito mais do que isso, importa lidar bem com um ente fragilizado pela doença. Interagir com uma pessoa, alguém que não é apenas um amontoado de órgãos e vísceras. Um ser que sofre mais por dentro que por fora, sente a morbidez por inteiro, não em pedaços, pensa deprimido, raciocina em condições adversas.
O atendimento médico está em rota de extinção nos tempos modernos. Abandonou, por completo, a natureza relacional que o distinguia. Tomou o rumo da mecanização em detrimento da sabedoria humanista que lhe dava consistência. Distanciou-se do fundamento conceitual de origem. Com efeito, atendimento é o ato de atender, verbo oriundo de attendere, do latim, que significa acolher, receber com atenção ou cortesia, segundo o Aurélio. Já não se atende assim em medicina. A lógica da linha de montagem impôs-se progressivamente, apequenando a arte de curar. Mudou conteúdos, desrespeitou originalidades, uniformizou padrões.
O cenário da produção em série tornou-se único. Subordinou procedimentos diagnósticos e homogeneizou condutas terapêuticas. O valor quantitativo prevaleceu sobre o qualitativo. A ciência reina soberana, ignora a consciência. Embora o paciente continue o mesmo, o ambiente é outro. O atendimento é nenhum, substituiu-se pelo direito de acesso as trapizongas e parafernálias de última geração, entendidas como medicina de ponta.
Salvo raras exceções, desaparece a figura daquele médico comprometido com o bem-estar físico, mental e social do indivíduo, o profissional que busca, acima de tudo, acumular patrimônio de confiança adquirida no envolvimento responsável com a saúde das pessoas. Fenece o cuidador que ouve o paciente, o examina à luz de conhecimentos semiológicos baseados na concepção do ser humano íntegro, não segmentado. Que o apalpa com mãos sensitivas, percute com dedos suavemente rítmicos, ausculta com ouvidos atentos e refinados. Perece o médico que pensa, reflete, dialoga com o doente, diagnostica, prescreve e orienta; que não dá primazia ao exame laboratorial nem à imagem radiológica ou ecográfica; que valoriza a linguagem do organismo, tão bem expressa nos sinais e sintomas nascidos na subjetividade da exteriorização singular para compor a objetividade das síndromes clínicas conhecidas.
Foi essa maneira de ser médico que permitiu identificar e descrever minuciosamente a maioria das doenças que afetam a espécie humana. O volumoso conteúdo dos tratados de medicina não é mérito das máquinas, nem dos computadores. Resultou de cabeças médicas observadoras no sentir, meticulosas no fazer, brilhantes no transmitir experiência, perseverantes na ininterrupta linha de investigação científica que não decompõe o corpo humano em fatias, muito menos atribui à alma a condição de ente extracorpóreo.
Síntese e análise conviviam em profícuo equilíbrio produtivo. Tecnologia só era importante quando servia ao homem. Visando converter-se em ciência exata, a medicina colocou o homem a serviço da tecnologia. Inverteu os papéis no momento crítico de transformação da sociedade. O preparo das novas gerações de médicos passou a ingressar num atalho sem saída. Rompeu os alicerces da formação em benefício da informação. Desmereceu o saber científico integral em favor do procedimento técnico especializado. Banalizou o acervo de sólidos valores profissionais, construído ao longo de séculos, abrindo caminho para o mito de uma exatidão fria e despersonalizada.
As faculdades de medicina reproduzem a nova mentalidade. Viraram a página dos nobres tempos, entregando-a à voracidade das traças cibernéticas feitas para deletar o passado em nome de um presente ilusório que não tem futuro. O impasse está posto. Para não ser extinta, a medicina deve retomar a natureza humanista de ciência não exata. Se não o fizer, terminará desvirtuada por arremedo científico mutante, impreciso na forma e pseudoexato no conteúdo.
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