Brasília, quarta-feira, 04 de fevereiro de 2009
DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, é professor titular de pediatria da UnB e presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
Quando a humanidade ouvir a criança, o mundo será melhor. Quando as sociedades aprenderem a respeitar a infância, o inferno desaparecerá da Terra. Quando o homem passar a ver no recém-nascido a pulsação da originalidade que faz a espécie evoluir, os valores humanos ganharão força e serão irreversíveis. Só a criança tem a marca do novo, o olhar puro da vida nascente, os gestos incontidos da liberdade em expansão, o sorriso sem compromisso com a farsa, o afeto exigente que não dispensa o afago, o sono sem pecados a redimir.
Os adultos estudam vários idiomas para se comunicarem com habitantes de outros países. Não se detêm a compreender a linguagem expressiva do ser humano em crescimento e desenvolvimento, única em todos os paralelos. Não se dão conta de que a criança insiste na fala chorosa para fazê-los descer da arrogância em que vivem e ouvir a expressão terna da criatura que prefere a existência na planície melodiosa da meiguice. Confundem choro com grito, alegria com desespero, candura com manha. Só gostam dos bebês enquanto adormecidos, calados, imóveis.
A família moderna terceirizou a criança, observa o pediatra José Martins Filho. Delegou o papel de ninho afetivo a outras instâncias cuidadoras que atenuam os duros efeitos do abandono. Compensa a transferência de suas atribuições por meio de generosidades materiais que vestem e revestem os filhos no estilo da moda, ou com montanhas de brinquedos eletrônicos que automatizam o lúdico e roubam o prazer de brincar. Em tal contexto, as crianças de famílias carentes são completamente excluídas.
Sabe-se que a água será limpa e potável quando as nascentes forem totalmente protegidas e respeitadas. Caso contrário, só será aproveitável se submetida a tratamento contínuo. Assim se dá com o ser humano. Se descuidado na origem, dificilmente alcançará a vida adulta com as virtudes que dele se espera. Sedativos, analgésicos, antidepressivos, alucinógenos, polícia, presídios, medidas corretivas e outras que tais são os recursos de que se dispõe para limpar o curso d’água da vida humana, irreversivelmente contaminado na fonte.
Toda criança é o hóspede recém-chegado à casa dos adultos. Vem para ficar. Espera uma recepção à altura da riqueza vital que traz consigo. Anseia afeto, aspira carinho, reclama atenção. Detesta ambiente com temperatura emocional fria. Tem calor irradiante. Viço incandescente. Quer carícia em todos os momentos. Só comer não lhe basta. Prefere alimentar-se de nutrientes temperados com a interação amorosa perfeita. Estar apenas desperto não lhe é suficiente. Quer desfrutar o prazer infinito de uma companhia que a entenda e satisfaça, e a quem possa, por sua vez, entender e agradar.
A sociedade deve preparar o melhor ambiente possível para receber hóspede tão especial. Arrumar a casa, iluminar os recantos sombrios das mentes, plantar bons sentimentos em todos os vasos, abrir as janelas da ternura, fechar as portas do desprezo, liberar o ritmo autêntico dos corações, fazer propagar a contagiante vibração da alma. É assim que se hospeda a vida humana, vinda a nós como dádiva pouco valorizada. É assim que se acolhe o recém-nascido, um ser que pertence a todos porque renova existências coletivas. O poeta Gibran Khalil, na visão universal que inspirou sua obra, afirmava: “Teus filhos não são teus filhos. São os filhos da vida que vêm ao mundo por meio de ti”. São entes que provêm do universo e têm a Terra por endereço existencial.
Todos os cidadãos são responsáveis pelas crianças de uma sociedade, não apenas os pais. O descuido coletivo explica a dramática situação da infância no país. A responsabilidade geral por patrimônio humano tão valioso não é conceito recente. Já existia no Brasil antes da chegada dos portugueses. As etnias indígenas, cujas culturas não foram completamente anuladas pela ganância dos brancos, sempre compreenderam que a proteção da criança incumbe a todos os adultos da aldeia. É norma comunitária que os colonizadores deveriam ter assimilado, há mais tempo, para a felicidade geral da nação.
Reverter esse atraso tão prejudicial à sociedade é desafio que precisa ser vencido. O Estatuto da Criança e do Adolescente já descreve os direitos que justificam a prioridade da infância, não somente no seio materno, mas no seio da sociedade-mãe. E a leveza poética de Chico Buarque dá asas ao sonho que um dia há de ser realidade: “Deve ter alamedas verdes a cidade dos meus amores, e quem dera os moradores, o prefeito e os varredores fossem somente crianças”.
Editor: Dad Squarisi // [email protected]
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