“Pré-natal e campanhas sem preconceitos são fundamentais na prevenção do HIV”, diz especialista da SBP

Em 2018, cerca de 320 crianças e adolescentes morreram a cada dia, em decorrência de causas relacionadas à aids, segundo panorama global recém divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). No Brasil, segundo os Dados Epidemiológicos do Ministério da Saúde, em um período de dez anos, houve um aumento de 21,7% na taxa de detecção de HIV em gestantes: em 2007, a taxa observada foi de 2,3 casos para cada grupo de mil nascidos vivos e, em 2017, passou para 2,8.

Em alusão ao Dia Mundial de Prevenção e Combate ao HIV, em 1º de dezembro, o SBP Notícias abordou o tema com uma entrevista exclusiva com a dra. Flávia Almeida, professora assistente de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

A médica é especialista em Infectologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e tem sua atuação profissional com os temas infecções comunitárias em pediatria, infecções congênitas e crianças e adolescentes vivendo com HIV.

Ela ressalta como a doença deve ser abordada com os adolescentes e jovens por meio de campanhas bem como pelos pais e a escola. “Poucas famílias conversam sobre sexualidade com os filhos, o tema ainda é tabu dentro de casa. Dessa forma, o papel da escola, conversando abertamente com jovens sobre educação sexual, HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) sem preconceitos, sem estigma e sem discriminação, é de fundamental importância”, observa.

No bate-papo, dra. Flávia fala ainda sobre a importância do pré-natal na prevenção da transmissão vertical do HIV, a eficácia do tratamento com antirretrovirais e o uso da PrEP como novo método preventivo, e o papel do pediatra no acompanhamento e tratamento de pacientes vivendo com HIV.

SBP Notícias – Qual a importância do pré-natal a fim de evitar a infecção vertical pelo HIV?

Dra. Flávia Almeida – O pré-natal é fundamental na prevenção da transmissão vertical (TV) do HIV. A TV pode ocorrer em 15 a 25% dos casos, caso a gestante não seja tratada e o recém-nascido não receba a profilaxia pós-exposição. Na grande maioria dos casos a TV ocorre no momento do parto. Com o tratamento antirretroviral (TARV) da gestante, essa taxa cai para menos de 2% e muitos países já eliminaram a TV do HIV, como algumas cidades brasileiras, por exemplo, São Paulo. A cidade, em novembro deste ano, foi certificada pelo Ministério da Saúde como o município que eliminou a transmissão vertical do HIV.  Isso foi possível por vários fatores, sendo um dos principais a realização do pré-natal de forma adequada, com o diagnóstico precoce e o início imediato do tratamento da gestante, possibilitando que esta mulher chegue no momento do parto com carga viral indetectável. É importante frisar que quando a cidade elimina a transmissão vertical, não quer dizer que não há nenhum caso de transmissão de mãe para o filho. De acordo com o Ministério da saúde, o objetivo da eliminação da TV do HIV é alcançar a meta de reduzir a menos de 2% o número de casos de HIV em crianças ou torná-los inexistentes.

SBP Notícias – A doutora acredita que o tema HIV deveria ser mais abordado pelos professores nas escolas bem como pelos pais em casa?

FA – Sem dúvida.  A falta de informação sobre sexualidade entre os jovens no Brasil contribui para as taxas de transmissão do HIV nesta idade.  Poucas famílias conversam sobre sexualidade com os filhos, o tema ainda é tabu dentro de casa. Dessa forma, o papel da escola, conversando abertamente com jovens sobre educação sexual, HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) sem preconceitos, sem estigma e sem discriminação, é de fundamental importância. Fornecer informação correta aos adolescentes, sem tabus e julgamentos, é passo fundamental para diminuir os altos números de sexo sem segurança, transmissão do HIV e outras ISTs e gravidez na adolescência. 

Acredito que além do papel da escola, as políticas públicas também são fundamentais para combater a desinformação e, principalmente, o preconceito. É necessário entender que todos têm acesso aos exames diagnósticos e o tratamento, e que as ISTs têm tratamentos rápidos, precoces e efetivos. As campanhas de prevenção devem ser sem preconceito e atingir o jovem no meio de comunicação que hoje ele mais acessa, isto é, a internet, mais especificamente nas redes sociais.

SBP Notícias – O Brasil já conta com a Profilaxia Pré-exposição (PrEP) ao HIV, porém o medicamento é restrito a um grupo considerado pelo Ministério da Saúde como mais vulnerável. A doutora acredita que se a oferta da PrEP fosse estendida a toda a população sexualmente ativa, independentemente de faixa etária ou grupo de risco, haveria a diminuição dos casos de infecção pelo HIV?

FA – A PrEP é uma estratégia que se mostrou eficaz e segura em pessoas com risco aumentado de adquirir a infecção pelo HIV. No Brasil, a epidemia de HIV é concentrada em alguns segmentos populacionais que respondem pela maioria de casos novos da infecção, como homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas transgêneros e profissionais do sexo. Além de apresentarem maior risco de adquirir o HIV, essas pessoas frequentemente estão sujeitas a situações de discriminação, sendo alvo de estigma e preconceito e aumentando, assim, sua vulnerabilidade ao HIV/aids. A PrEP também é indicada para casais sorodiscordantes. Porém, o pertencimento a um desses grupos não é suficiente para caracterizar indivíduos com frequentes situações de exposição ao HIV, o que é definido por práticas sexuais, sem uso de preservativo, nos últimos seis meses e/ou episódios recorrentes de ISTs e/ou uso repetido de Profilaxia Pós-exposição (PEP). Sem dúvida, a PrEP é uma ferramenta fundamental no controle da epidemia. Mas para que essa estratégia seja eficaz, é necessário que a rede de saúde remova as barreiras de acesso a essas populações, acolhendo-as na sua integralidade e garantindo seus direitos à saúde de qualidade  

SBP Notícias – Qual o papel do pediatra na abordagem sobre ISTs durante as consultas com os adolescentes? Como essa questão deve ser trabalhada na relação médico-paciente?

FA – A questão deve ser trabalhada por meio de uma relação médico-paciente de confiança, sem julgamento e de forma sigilosa. Esse é ponto fundamental na adolescência.

SBP Notícias – A doutora acredita que em função de o tratamento hoje ser totalmente eficaz, controlando a doença e aumentando a sobrevida das pessoas que vivem com HIV, isto é um fator para o adolescente atualmente se descuidar da prevenção?

FA – Essa é uma das grandes discussões atuais, ou seja, a história de uma doença crônica totalmente controlável e com a oferta da PrEP, a maioria dos jovens deixam de usar preservativo. Quem viveu a “Era Aids”, vendo o Cazuza e tantos outros famosos morrerem em decorrência da doença, e mostrada pela televisão de uma forma impactante, essas pessoas sentiam muito medo por causa daquela época. Hoje em dia, as pessoas têm menos medo sim, mas ainda há muito preconceito. Porém, eu acho que o jovem, por natureza, tem um comportamento de risco e de querer quebrar as regras. Por isso, as campanhas para este perfil de público são extremamente importantes para atingir essa população e conscientizá-los da importância da prevenção. 

SBP Notícias – A transmissão por aleitamento materno pode se dar pela mãe com resultado não reagente para HIV no pré-natal e no momento do parto, mas que se infectou durante a lactação. Como o pediatra deve proceder caso isso ocorra?

FA – Esta é uma preocupação, pois quando a mulher se infecta amamentando a transmissão é muito maior. O pediatra deve explicar a importância do uso do preservativo durante a lactação. Contudo, caso a lactante venha a se infectar durante o período da amamentação, e ela faça por si mesma uma testagem para HIV com resultado positivo, o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Crianças e Adolescentes do Ministério da Saúde orienta a interrupção da amamentação e o pediatra deverá fazer a profilaxia pós-exposição (PEP) para a criança.

SBP Notícias – Quais procedimentos o pediatra deve ter ao receber em seu consultório pela primeira vez uma criança portadora do vírus HIV? O que diz o protocolo atual do Ministério da Saúde para o tratamento da doença para faixa etária de zero a 17 anos?

FA – Acredito que em primeiro lugar, a criança e a família/cuidador devem ser acolhidas. A formação de uma boa relação médico-paciente-família é fundamental em qualquer doença crônica, novamente com respeito e sem julgamento. É fundamental reforçar que desde a década de 90, com a terapia tripla, a infecção pelo HIV é crônica, totalmente controlada com TARV. Deve-se enfatizar que, com boa adesão ao tratamento, essa criança terá uma vida normal em todos os sentidos. O Brasil foi um dos primeiros países a oferecer gratuitamente o TARV para todos os indivíduos vivendo com HIV.