Se criança votasse, o país seria outro

Dioclécio de Campos Júnior Médico, professor titular de pediatria, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria [email protected] Criança não vota, por isso vale pouco para os candidatos. Quase nada. Só serve como pequeno figurante das imagens de campanha. Recebe beijos, sorrisos, abraços e afagos de políticos treinados por competentes marqueteiros. Mantém, contudo, a autenticidade da …

Dioclécio de Campos Júnior

Médico, professor titular de pediatria, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
[email protected]


Criança não vota, por isso vale pouco para os candidatos. Quase nada. Só serve como pequeno figurante das imagens de campanha. Recebe beijos, sorrisos, abraços e afagos de políticos treinados por competentes marqueteiros. Mantém, contudo, a autenticidade da alma infantil. Não retribui porque percebe a artificialidade do gesto, a frieza do olhar, a bradicardia da emoção profissional. O único personagem que mostra seriedade em fotos de propaganda eleitoral é a criança. Só ela não sorri. Não vê graça alguma na encenação de que participa sem ser consultada. Na maioria das vezes, não esconde a reação de susto, quase medo. Usada para atestar a sensibilidade humana do candidato, não faz a dobradinha correspondente. Revela equilíbrio. Não se deixa envolver pelo clima de falsa alegria e jargões do profissionalismo eleitoral que não respeita a infância.

A criança está muito próxima da fonte da vida, bem distante da aridez ética inspiradora dos embates e embustes que disputam o poder. Sua sintonia é outra. Afina-se aos acordes infinitos da melodia cósmica, o som do amor universal. Pulsa na frequência da espontaneidade sem limite. Labora na divisa do original, pressuposto inefável do ser, atributo da existência que faz sentido. Exterioriza um contraponto comportamental que não se pode mais ignorar, sob pena de a sociedade desaparecer no superficialismo das aparências, no engodo da simulação, no espectro desolador do atraso.

Eleição deveria ser momento mais respeitoso para toda sociedade que se pretende civilizada. Em nenhuma outra ocasião os políticos são forçados a lembrar que as pessoas existem, a debruçar-se um pouco sobre os problemas que as afetam, procurar ouvi-las, prometer tudo o que reivindicam. Curvam-se ao poder potencial do voto, o único exercido de fato pelo povo.

O aprimoramento contínuo do processo de sucessão democrática supõe infância viva, bem cuidada, saudável, educada. É a fonte que dá origem às gerações de eleitores e candidatos em constante renovação. Não pode ser exaurida, muito menos turvada a limpidez dos fluidos virtuosos que jorram de suas nascentes. Sem ela democracia é abstração. Se suas necessidades não integrarem os compromissos dos candidatos, a consciência dos eleitores e a seriedade das candidaturas continuarão sempre aquém do esperado. Ficará neutralizada a evolução política do eleitorado, requisito maior da capacidade transformadora contida no poder do voto.

Os programas de governo defendidos na presente campanha eleitoral, muito semelhantes ou iguais, têm como destinatário o eleitor, não a sociedade. Simulam engajamento com soluções nada originais para superar desafios que mais parecem criados para ficar. Só quem vota vale alguma coisa, não raro dinheiro vivo. O não eleitor carece de relevância, não é ouvido.

Por força da minoridade, a criança está naturalmente excluída do processo eleitoral. Não por outra razão, a maioria dos políticos insiste em situar a infância no contexto arcaico que a define como incapacidade de falar. Não busca entendê-la, prefere ignorá-la. Considera sem importância incluir nas plataformas de campanha um ser que ainda não vota. Daí a pobreza de conteúdos, a redundância das discussões, o vazio das propostas pouco inovadoras.

Estudos científicos revelam que, nos tempos atuais, a sociedade somente avançará se fizer investimentos maciços, contínuos e prioritários em educação e saúde da primeira infância. Não há base mais segura para todo e qualquer sonho de futuro. Cada dia que passa sem fazê-los o país perde tempo. Gira em falso. Opta por fortalecer a economia sem desenvolvimento humano. Três milhões de crianças nascem anualmente no Brasil. Delas, 58.500 morrerão antes de completar um ano de vida. Apenas 411.810 terão acesso à educação infantil. A maioria das demais ficará relegada ao desprezo, sem chance de cidadania plena.

A Sociedade Brasileira de Pediatria apresentou sugestões de governo aos presidenciáveis. Propôs políticas coerentes para promoção da primeira infância, com ênfase no Programa Nacional de Educação Infantil, projeto de lei que tramita no Senado há três anos. Nenhum dos candidatos aparenta valorizar a iniciativa. Criança não figura entre suas preocupações reais.

A prioridade da infância merece cláusula constitucional. Assegurar creche e pré-escola de qualidade, em tempo integral e em número suficiente para toda a criançada há de ser dever do Estado. Se a criança pudesse votar, essa utopia já seria realidade. Como não pode, seguirá chorando sem ser ouvida.

Editor: Dad Squarisi // [email protected]
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