DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global PediatricEducation Consortium ([email protected])
A sigla SUS colou. O conceito não. Contradiz o que pretende passar para os usuários. Saúde não é ausência de doença. É o bem-estar físico, mental e social do indivíduo. Supõe sociedade justa, igualitária, segura, educada, produtiva de bens necessários e não de males supérfluos. Não se promove saúde tratando enfermos. Cura é ação válida. Reduz sofrimento, atenua sequelas. Porém, não atinge o cerne da questão. As doenças não desaparecem.
Propagam-se mercê de um modelo que prioriza terapêutica, não profilaxia. Tratamento cura o paciente, mas não impede a difusão da moléstia. Alivia sintomas, não erradica fontes do mal. Não protege o cidadão dos riscos potencialmente lesivos às estruturas e funções do organismo humano.
As evidências são fartas. Nos Estados Unidos, o impacto de investimentos orçamentários do setor saúde, medido pela redução da mortalidade, mostra o seguinte: 90% dos recursos são aplicados para manter e ampliar a rede de serviços destinados ao diagnóstico e tratamento de doenças, resultando na redução de apenas 11% da mortalidade; 1,5% investidos em mudança de estilos de vida levam à queda de 43% da mortalidade; 1,6% destinados a qualificar o meio ambiente diminuem 19% da mortalidade; e 7,9% despendidos em biologia de saúde fazem baixar 27% do referido indicador.
Em síntese, tratar doentes consome quase todo o orçamento de saúde daquele país. O retorno é insignificante quando comparado ao produto de investimentos mínimos em outras políticas sanitárias. No Brasil, não é diferente. O SUS utiliza a maioria do orçamento nos cuidados com enfermos. A rede física aumenta. Despesas com recursos materiais, equipamentos e insumos diversos exorbitam. Morbidades grassam. Quantidade e qualidade de serviços deixam a desejar. Relação custo/benefício negativa expõe a precária sustentabilidade do sistema.
Persistir nessa rota só é coerente com a lógica da economia capitalista. Reforça a dinâmica do consumismo supérfluo. Eleva o uso indevido de medicamentos, tecnologias diagnósticas e terapêuticas deslumbrantes, prática que atrai investimentos, aumenta produção industrial, gera emprego, amplia o comércio, aumenta a arrecadação de impostos. A economia robustece. A indústria agradece. A sociedade adoece. Quanto mais doença, mais lucro e benefício financeiro.
Para incorporar princípios éticos à condução das políticas públicas, urge mudar o sistema de saúde. Imediatismos nada resolvem. Mediatismos, muito menos. Dizer, por exemplo, que há falta de médicos no país é falar sem pensar. Na verdade, há excesso de doentes. O que falta é população sadia. A solução digna não é, pois, promover o boom de cursos médicos desqualificados para criar exército de reserva de tão complexa mão de obra. Cumpre inverter a prioridade das políticas do setor, investir na prevenção para erradicar causas das enfermidades que acometem os cidadãos com maior frequência. O único caminho é promover saúde no verdadeiro sentido, identificado com o bem-estar da cidadania.
Ministério e secretarias ditos da saúde precisam sê-lo de fato. Não passam de ministério e secretarias da doença. Recorrem a campanhas publicitárias ilusórias e eleitoreiras para fazerem crer que o sistema público vai muito bem. Mantêm olhar de descaso para conhecimentos científicos da epigenética, cujos conteúdos exaltam a primazia dos cuidados preventivos sobre os curativos. Entendem que atenção primária é coisa simples e barata. Pode ser prestada por qualquer profissional, independentemente de sua formação. Ledo engano. O modelo chinês do médico pé descalço já era. Cuidado primário é tão complexo quanto o dos demais níveis de atenção. Exige visão abrangente e profunda da medicina, sem a qual se perde a oportunidade de dotá-lo das condutas preventivas e educativas capazes de reverter a atual falta de cultura sanitária.
A maioria das doenças do adulto tem início na infância. Para preveni-las, não há alternativa reducionista e simplificadora que se justifique. Quanto mais se respeita e valoriza o cuidado pediátrico qualificado nessa fase de vida, menor a prevalência de males futuros. Quanto mais intervenções educativas em saúde nos meios de comunicação, maior o potencial de bem-estar das pessoas. Quanto menos propagandas enganosas e merchandising na mídia, maior a chance de ambiente compatível com os requisitos de vida saudável. O universo do SUS vai muito além de UPAs, Samus e hospitais. Se não avançar no papel revolucionário que lhe cabe, continuará sendo um Sistema Ultrapassado de Saúde.
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