SUS desrespeita a criança

Quinta-feira, 15 de setembro de 2011 DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR Médico, pesquisador associado da UnB, secretário de Estado da Criança do Distrito Federal, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria ([email protected]) Nada pior para uma sociedade do que entender a política pública como reinado de verdades absolutas. É a visão de fundamentalistas que não admitem o progresso, …

Quinta-feira, 15 de setembro de 2011

DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR

Médico, pesquisador associado da UnB, secretário de Estado da Criança do Distrito Federal, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
([email protected])

Nada pior para uma sociedade do que entender a política pública como reinado de verdades absolutas. É a visão de fundamentalistas que não admitem o progresso, cultivam o atraso. Não toleram divergências, perpetuam dogmas. Não identificam o mundo em transformação, apostam no imediatismo. Não abrem a mente, preferem a cegueira intelectual. Não se preocupam com direitos da população, desfrutam privilégios.

O fundamentalismo sanitarista aparelhou o Estado brasileiro. É responsável pelo impasse do SUS. Impede mudanças sem as quais se aprofunda o fosso que divide os cidadãos em ricos e pobres. Concede aos primeiros o acesso à assistência qualificada à saúde, em todos os níveis. Reserva aos segundos os programas e estratégias de baixo custo, desqualificados, mas tidos como suficientes para classe social desprovida de poder econômico. O ranço da desigualdade comanda estratégias ditas inclusivas, na verdade excludentes. Categoriza cuidados com a saúde em primários, secundários e terciários. Desfaz a integralidade, doutrina que deve presidir a dinâmica de todo sistema fundado na superação das iniquidades sociais.

O Brasil é o único país a formar um pediatra em apenas dois anos. Um absurdo. Todos os demais desenvolvem programas de residência médica pediátrica em três anos. A realidade nosológica e as tendências epidemiológicas dos tempos atuais são outras, mais abrangentes. Seguem o ritmo dos fenômenos ambientais, familiares, educacionais, afetivos e comportamentais que apontam rumos diferentes para os serviços de saúde na era pós-industrial. Conter a evolução qualitativa das novas gerações de pediatras é condenar à falência o modelo brasileiro de saúde pública, nascido sob a égide da equidade e inspirado no conceito da universalidade, referências que não saem do discurso.

A especialidade médica diferenciada para prestar cuidados qualificados à criança e ao adolescente é menosprezada pelo SUS. Os gestores banalizam a importância do ciclo de vida destinado ao crescimento e ao desenvolvimento físico, mental e social do ser humano. Não vislumbram o retorno do investimento na saúde da infância e da adolescência, fase de vida em que tem início grande parte das doenças do adulto. Delegam competência pediátrica a profissionais não médicos e a médicos não pediatras. Fazem-no por ignorância científica ou por suporem que o acesso à pediatria de qualidade deva ser regalia restrita a crianças da classe privilegiada a que pertencem. Negam aos pobres usuários do sistema público um direito inalienável. Prova disso é que os filhos dos gestores jamais são assistidos pelo SUS. Integram a clientela dos pediatras mais experientes.

Há seis anos a Sociedade Brasileira de Pediatria tenta aprovar, na Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação, o programa de formação integral do pediatra. A iniciativa leva em conta a complexidade científica do atendimento a que crianças e adolescentes têm direito. Valoriza a faixa etária definida como prioridade absoluta pelo artigo 227 da Constituição. Mas, indiferentes ao teor do texto constitucional, negligentes com a atribuição que lhes cabe, representantes do MEC e do Ministério da Saúde recorrem a manobras arquitetadas para desqualificar a pediatria do país.

Não respeitam a relevância dos novos conteúdos que devem fazer parte da capacitação teórica e prática do médico a ser preparado para lidar com a infância e a adolescência. Não percebem a profundidade de temas como violência, dependência química, distúrbios psicossociais, doenças crônicas, obesidade, entre tantos outros que movimentam o cotidiano pediátrico do século 21 e requerem duração ampliada do treinamento profissional especializado. As famílias sabem disso. A sociedade não quer pediatras pés descalços. A maioria dos países já avançou nos desafios da atenção à saúde da criança na atualidade. O SUS perde tempo. Enxuga gelo. Patina. Revela postura de atraso. Quer o fim da pediatria, relegando-a à insignificância. Prioriza a quantidade.

O ministro da Saúde conhece os problemas advindos da atitude fundamentalista de burocratas que controlam a saúde pública. Tem consciência de que inviabilizam o impacto positivo da pediatria no SUS. É autoridade que possui experiência médica e habilidade política capazes de reverter ação tão prejudicial para nossa gente. Tem tudo para fazê-lo. Porém, a persistir o obscurantismo, só restará à entidade nacional dos pediatras o caminho da desobediência civil para implantar uma medida de tamanho mérito.