As dificuldades enfrentadas pelas famílias com crianças diagnosticadas com microcefalia por conta do zika vírus têm sido acompanhadas pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Um trabalho recente, coordenado pela Anis Instituto de Bioética, organização feminista não governamental e sem fins lucrativos, fundada em 1999, chamou a atenção dos especialistas no tema pela riqueza de detalhes, que ajudam a compreender os desafios enfrentados pelos bebês e suas mães.
A SBP disponibiliza, a seguir, uma síntese desse vigoroso trabalho, o qual pode ser acessado na íntegra no site da Anis – Instituo de Bioética. Recomenda-se a leitura para ver como se materializa no atendimento a falta de acesso ao tratamento, a precariedade do pré-natal e o preconceito contra essas famílias.
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O fim da situação de emergência para a epidemia do zika vírus foi decretado pelo Ministério da Saúde em 11 de maio de 2017. No entanto, isso jamais terá fim para as mães das crianças com a Síndrome Congênita do Zika, que viverão uma maternagem carinhosa, cuidadora e solitária. O que se reivindica não é a garantia da felicidade através das políticas sociais, mas que haja condições para uma vida digna dessas famílias. Boa leitura!
Zika em Alagoas: a urgência dos direitos
“Ele tem microcefalia, né? (...) Ó, aqui, veja, e daí colocou [a criança] de cabeça para baixo (...) você vai levar para casa ou vai deixar ela aqui? ” (...) Esse é o relato de Neguinha, como gosta de ser chamada Maria José Santos de Araújo – moradora de Japaratinga, cidade turística a 118 quilômetros de Alagoas – ao receber a notícia da parteira de que sua filha nasceu com microcefalia.
A experiência de discriminação sofrida por ela não é única. A constatação é da Expedição Maria Bonita, realizada pela Anis Instituto de Bioética, organização feminista não governamental e sem fins lucrativos, fundada em 1999, em Brasília (DF). O trabalho foi coordenado pela antropóloga Débora Diniz.
Desamparo e solidão são algumas das características das famílias que passaram a ser conhecidas como ‘famílias do zika’. Mulheres que estão à margem da sociedade: em sua maioria pobres, negras, indígenas, com pouca escolaridade ou analfabetas. Essas mães não estão no mundo do trabalho e dependem da saúde pública e de políticas sociais para cuidar de seus filhos com a Síndrome Congênita do Zika.
Em dezembro de 2016, foram percorridos mais de 800 quilômetros em 21 municípios nas regiões do Agreste, Sertão, Alto Sertão e Litoral no estado de Alagoas. A pesquisa entrevistou 54 mulheres que tiveram crianças confirmadas ou descartadas da Síndrome Congênita do Zika pelos critérios vigentes da época do nascimento ou no atendimento de puericultura. Desse total, cinco casos foram classificados pela equipe da expedição como erros de notificação e não foram incluídos na pesquisa. O mapa, feito pela Expedição, mostra exatamente a sobrevivência em extrema precarização da vida.
LOCALIDADES – Outro importante fator tratado no levantamento foi a diversificação de localidades, por se tratar de uma epidemia com características ambientais. No estado, 40 municípios tiveram casos registrados confirmados e a pesquisa cobriu 52% deles. Já nos estados vizinhos, a prevalência de nascimento de crianças afetadas pelo vírus em Alagoas é exatamente a mesma da Bahia e, um dos aspectos levantado no documento é a diferença que ocorre no estado em relação aos seus vizinhos.
Tópicos como má qualidade dos dados, descentralização do monitoramento dos novos casos, frágil rede de cuidado e acesso aos casos notificados de crianças para que sejam confirmados ou descartados pela avaliação médica são expostos para a reflexão do que pode ter ocorrido no estado que possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país.
PRÉ-NATAL – O quadro dessas mulheres é agravado pela precariedade no acesso à saúde no município em que residem. O início do pré-natal das mulheres de todas as idades foi tardio: 16 mulheres (32%) começaram o pré-natal após o primeiro trimestre e uma delas não teve nenhuma assistência em saúde na gravidez. O desconhecimento da gravidez e a dificuldade de acesso ao serviço são dois cenários possíveis para que haja esse número. Muitas das cidades visitadas são remotas e, por isso, mesmo com postos de saúde próximos, houve relatos de dificuldade ou inexistência de profissionais. Grande parte das mulheres só soube do risco de transmissão vertical no momento do parto com o diagnóstico de microcefalia no recém-nascido, uma vez que, o zika vírus não era parte das preocupações ou cuidados do pré-natal.
DIFICULDADES – Um dos principais obstáculos encontrado pelas mulheres foi na hora de realizar o diagnóstico. Em Alagoas, o protocolo publicado em janeiro de 2016 informava que os itens necessários para a criança entrar na política do zika eram os exames e avaliações previstos na Política Nacional do Ministério da Saúde e a tomografia computadorizada com resultado sugestivo para alterações por infecção por zika. No estado, só dois hospitais públicos possuem o aparelho tomográfico e há uma fila de espera de meses para ter acesso ao exame.
A maior parte das famílias (63%) também não tinha acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) porque as demandas de documentos para perícia médica e do serviço social são excessivas. A falta de transporte se mostrou uma barreira insuperável para cumprir todas as etapas burocráticas de acesso ao benefício, sendo esse um item fundamental para a sobrevivência familiar e a garantida de cuidados da criança.
A saída da mulher do trabalho pago gera efeitos negativos tanto para a economia familiar como para a vida dela – que se transforma em cuidadora em tempo integral, responsável pelo bem-estar da criança e também pelo “salário da criança especial” (termo pelo qual ficou conhecido o BPC). Isso é claramente percebido quando analisa a possível volta dessas mães ao trabalho pago, já que os anos nos quais cuidou do filho contarão como exclusão.
Ao falar das 25 adolescentes que tiveram o filho como caso confirmado ou em investigação para zika, a situação fica ainda mais grave. Cerca de 40% delas não estavam inseridas em nenhuma política social de renda (BPC ou Bolsa Família). De acordo com os relatos, a orientação que receberam no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) era de que não poderiam ser beneficiadas dos programas porque eram menores de idade. Ou seja, só poderiam participar como dependentes de um adulto, mas isso não era possível porque estavam fora da escola (critério que as torna não elegíveis para o Bolsa Família em sua família de origem como filha).
TRATAMENTO – O transporte é visto como um problema tanto para o diagnóstico da criança, durante a consulta de pré-natal, como para o tratamento dos pequenos, após o nascimento. O deslocamento dessas mães e filhos para os centros de saúde para puericultura ou estimulação precoce é um dos graves obstáculos, uma vez que as distâncias são excessivas.
O estado possui dois centros de tratamento de referência: um em Arapiraca e outro em Maceió, e não possui transporte de grande porte para nenhum dos dois municípios. Mais da metade das mulheres (55%) dependia do transporte da prefeitura para levá-las ao centro de tratamento para uma sessão semanal de estímulo de 30 minutos. As outras 45% informaram que não possuíam transporte da prefeitura, o que significa que as crianças estão desassistidas de estimulação precoce. Em média, o deslocamento para o centro de referência mais próximo era de três horas para cada mulher e criança.
Sob essa perspectiva, as crianças não receberam alguns itens de cuidados para suas particularidades. Irritabilidade, espasmos ou convulsão sãos algumas das características da Síndrome Congênita do Zika, mas existem particularidades: algumas crianças possuem especificidades alimentares por restrições para deglutinação; outras necessitam de próteses ou órteses, sendo mais comum o uso de óculos. Nenhuma das mães entrevistadas havia recebido os óculos como parte da assistência pública em saúde.
Dentre as 23 crianças (47%) que precisam da medicação de uso contínuo, somente 6 (26%) recebiam os medicamentos na rede pública de saúde. Uma em cada duas famílias (56%) que precisava comprar os remédios informou não possuir condições financeiras de adquiri-los para o controle de convulsões ou da irritabilidade, estando sem assistência farmacêutica.
DESAMPARO E PRECONCEITO - As mães afirmavam a normalidade da criança para enquadrar a maternidade no afeto e cuidado e rejeitar a suspeita pública sobre o abandono ou responsabilização por ter adoecido de zika na gravidez. A ideia de microcefalia e normalidade caminhando juntas também ocorre para que seja enfrentada a curiosidade pública da criança com o “probleminha do mosquito”.
Nos mais diversos sites, os comentários eram extremamente preconceituosos e foram disfarçados como curiosidade dos leitores. No espaço digital houve o sofrimento dessas mulheres por eventos traumáticos, como de ofensas, textos de ódio e rejeição à criança. O desemparo foi demonstrado também nas mensagens que circulavam em redes sociais como o WhatsApp, nas quais correntes de mensagens eram publicadas sobre como é ser mãe de uma criança especial. Nenhuma delas descrevia o filho como portador de deficiência, mas como ‘criança especial’.
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