Brasília, domingo, 24 de fevereiro de 2008
DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, professor titular da UnB e presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
Levou tempo, mas começou a acontecer. O significado da criança para o equilíbrio econômico da sociedade tornou-se evidente. Cresceu em importância. Ganhou visibilidade. Não o de qualquer criança, mas o das bem cuidadas. Daquelas concebidas num ambiente uterino favorável, com acesso ao pré-natal de qualidade. Daquelas que vêm ao mundo cercadas de recursos modernos para garantir o parto adequado a cada situação, isto é, o parto humano, não o humanizado por decreto ou por decálogo de procedimentos. Daquelas que são acolhidas no aconchego, no calor do ninho social. Das que recebem a melhor alimentação para atender seus requisitos nutricionais, os melhores estímulos para estruturarem o cérebro, adquirirem inteligência, expandirem originalidades. Das que crescem e se desenvolvem saudáveis, imunizadas, assistidas na evolução de seu organismo em contínua transformação, de sua personalidade em radiosa metamorfose. Daquelas que se socializam, vão à escola em tempo integral, recebem educação verdadeira, brincam protegidas, vestem-se como gente, vivem em moradias humanas, gozam de estima e da consideração da comunidade. Em síntese, o papel histórico das crianças que têm garantidos os direitos fundamentais. Não são privilegiadas. Apenas tiveram sorte. Escaparam à injustiça social que discrimina as outras, aquelas às quais se negam as condições elementares que consubstanciam a vida humana.
O dinamismo vertiginoso do crescimento econômico atual trouxe à tona a prioridade estratégica de investir na infância sadia. É pressuposto da sobrevivência das sociedades, fundada no caráter contínuo e sustentável da riqueza baseada na produção de conhecimento. Sem infância sadia, a inteligência coletiva perde fôlego, envelhece, esclerosa, torna-se reacionária, conservadora, fechada às mudanças, avessa às inovações, refém de mesmices estéreis e empobrecedoras.
Ora, a criança saudável é um objetivo que somente se atinge mediante cuidados seqüenciais, ininterruptos, competentes, diferenciados. Dentro e fora da família. É, afinal, a matéria-prima do desenvolvimento social. O improviso, a simplificação, a delegação de competências, o quantitativo em detrimento do qualitativo são feições do descaso, sintomas do descompromisso com a criança.
Cuidado demanda recursos materiais apropriados. Mas requer, principalmente, recursos humanos preparados à altura do desafio. A qualidade da infância, requisito para a continuidade da vida, não pode prescindir de bons cuidadores de crianças, vale dizer dos profissionais que dão completude ao processo de crescimento e desenvolvimento da população infantil. Sem a dedicação dessas pessoas à nobre missão de plasmar infâncias saudáveis, a sociedade perde o rumo da história e desiste do futuro por não entender o valor econômico da criança.
O Brasil reluta em aceitar a evidência. Parece cego a todos os significados da infância. Do afetivo ao econômico, do filosófico ao existencial, do teórico ao prático. Nenhum deles se converte em prioridade, nem em política de governo. A criança não vale nada em nosso país. Prova disso é o desprezo pelos que cuidam dela. Quando nasce um brasileiro, o SUS paga R$ 110,00 ao obstetra e R$ 23,00 ao pediatra, o cuidador do recém-nascido na sala de parto, o médico que atua em precárias condições de trabalho e recebe honorários aviltantes. Só a indiferença dos governos pela criança pode explicar tamanho disparate.
O valor da infância é tão desrespeitado, que as políticas públicas, como o Programa de Saúde da Família, insistem no absurdo de impedir o acesso das crianças aos cuidados do pediatra, profissional qualificado para prestá-los. Cite-se ademais, à guisa de exemplo, a humilhante remuneração que se paga pela atividade do cuidador da infância chamado professor, responsável pela lapidação educacional das gerações que se sucedem. Mencionem-se também os cidadãos que exercem função de cuidadores naturais do ser humano nos primeiros anos de vida, isto é, a mãe, o pai e os familiares. Fazem-no sem esperar qualquer reconhecimento ou remuneração, direta ou indireta. Contribuem, sem se darem conta, para a causa da sobrevivência econômica da sociedade. Um esforço de grande relevância para o bem comum, sem nenhuma forma de retribuição.
Não há outra saída. A economia brasileira só será sustentável quando acabar com as desigualdades sociais, privilegiar a infância — sem distinções — e tiver por indicadores preferenciais o número, a qualidade e a justa valorização dos cuidadores de suas crianças.
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