Em março desse ano, o epidemiologista e professor dr. Cesar Victora se tornou o primeiro pesquisador brasileiro entre os vencedores do Prêmio Gairdner, a mais importante premiação científica do Canadá e uma das mais respeitadas mundialmente na área de ciências da saúde. Ele foi reconhecido por conduzir a pesquisa “Associação entre aleitamento materno e inteligência, escolaridade e renda aos 30 anos de idade: um estudo prospectivo de coorte de nascimento do Brasil”, que demonstra que o leite materno favorece maior renda na vida adulta.
O dr. Cesar Victora se aprofundou nos estudos relacionados ao aleitamento materno ao trabalhar como médico comunitário em favelas de Porto Alegre e Pelotas, no Rio Grande do Sul. Sua angústia ao atender pacientes repetidamente pelos mesmos problemas de saúde, como subnutrição, diarreia e outras infecções, o estimulou a estudar saúde coletiva, mais especificamente epidemiologia, área em que atua profissionalmente.
Ao SBP AmamentAÇÃO – edição extra Agosto Dourado, o dr. Cesar Victora conta que, durante as pesquisas, um dado sobre o tempo de aleitamento materno no Brasil o deixou impressionado. “Naquela época, o período de amamentação tinha uma duração mediana de três meses. Pensei que seria uma boa ideia fazer pesquisa para quantificar a proteção fornecida pelo aleitamento materno contra a mortalidade infantil, utilizando métodos epidemiológicos e estatísticos, que naquela época eram o estado da arte para doenças não transmissíveis”, diz o pesquisador.
Foi a partir daí que dr. Victora decidiu estudar o papel dos chás e sucos, que praticamente todas as mães davam para as crianças, mesmo aquelas amamentadas, e descobriu o aumento da mortalidade relacionado à administração destes líquidos. “Este foi o primeiro estudo sobre esta associação, sendo confirmado posteriormente em outros países. Publiquei meu estudo em 1987, e, a partir dos anos de 1990, as agências internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Unicef passaram a recomendar o aleitamento exclusivo durante os seis primeiros meses de vida”.
Desde então, o médico tem se dedicado às pesquisas relacionadas ao aleitamento materno no Brasil e seus benefícios para as mães e as crianças. No estudo que o lançou à premiação Gairdner, dr. Victora acompanhou por 30 anos um grupo de quase 3.500 crianças nascidas em 1982 no município de Pelotas (RS). A conclusão é de que o aleitamento materno está associado a maiores níveis de inteligência, escolaridade e renda financeira na idade adulta. A seguir, dr. Victora fala sobre os estudos realizados sobre o aleitamento materno ao longo da sua trajetória profissional.
“Nossa série sobre amamentação no The Lancet mostra que amamentar não é importante apenas para a saúde da mãe e do bebê, mas também para reduzir os gastos assistenciais e promover o desenvolvimento social e econômico via aumento da inteligência e da produtividade”.
SBP AmamentAÇÃO – Em seu estudo publicado no ano passado no The Lancet, o Brasil foi apontado como referência em amamentação. A que fatores o senhor credita isso?
Dr. Cesar Victora – São vários os fatores. Temos um controle muito rígido da comercialização e propaganda de substitutos do leite materno, como o leite em pó em suas diversas formulações, e o envolvimento da sociedade civil, como o grupo IBFAN (Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar). Desde os anos de 1980, órgãos federais, estaduais e municipais treinaram milhares de profissionais de saúde em aspectos práticos da promoção e apoio ao aleitamento. Entidades não governamentais como a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Pastoral da Criança se engajaram diretamente na luta pelo aleitamento. Temos a maior rede de bancos de leite materno do mundo, e temos muitos hospitais credenciados como Hospitais Amigos da Criança (HAC). A mídia também teve um papel fundamental para estabelecer o aleitamento como a melhor forma de alimentar um recém-nascido, com participação de atrizes e modelos famosas que amamentaram seus filhos. Em resumo, foi toda uma série de ações que contribuíram para aumentar a duração mediana do aleitamento de três meses, nos anos 1970, para mais de um ano, atualmente. O Brasil é o melhor exemplo de progresso em amamentação que eu conheço. Por este motivo, usamos nosso país como referência na série do The Lancet.
SBP AM – Como se sentiu em relação ao prêmio? Considerando o peso no meio científico deste prêmio, qual é o significado de ter sido o primeiro pesquisador brasileiro a recebê-lo? Como foi receber a notícia desse prêmio? Já imaginava que isso pudesse acontecer?
CV – Para mim foi uma surpresa receber este prêmio. Eu sabia que havia sido indicado pela Dra. Nubia Munoz, que descobriu a relação entre o vírus HPV e o câncer de colo uterino, e foi agraciada com o prêmio em 2009. Mas sabia também que a competição seria acirrada, tendo em vista os agraciados nos anos anteriores, que são cientistas mundialmente famosos. Creio que fui o primeiro pesquisador de um país de renda média ou baixa a ser premiado, o que me deixa particularmente feliz. E, finalmente, a premiação também reflete o trabalho de equipe que realizamos aqui na Universidade Federal de Pelotas (UFPel)/ É um reconhecimento para todo um grupo, mais do que para um indivíduo. Sempre é muito bom ver o nosso trabalho reconhecido dentro e fora do Brasil.
SBP AM – Por que decidiu estudar o aleitamento materno com tanta profundidade? Houve alguma motivação específica para se dedicar a este tema de pesquisa sobre a mortalidade infantil e a relação com amamentação?
CV – Após terminar o curso de Medicina, fui trabalhar como médico comunitário em favelas de Porto Alegre e depois em Pelotas, no Rio Grande do Sul, onde vivo desde 1977. Sempre gostei de trabalhar com crianças, e me angustiava ver as mesmas crianças consultando repetidamente com subnutrição, diarreia e outras infecções. Foi então que resolvi estudar saúde coletiva, mais especificamente epidemiologia. Me impressionava também a curta duração do aleitamento materno no Brasil, que naquela época tinha uma duração mediana de três meses. Pensei que seria uma boa ideia fazer pesquisa para quantificar a proteção fornecida pelo aleitamento materno contra a mortalidade infantil, utilizando métodos epidemiológicos e estatísticos, que naquela época eram o estado da arte para doenças não transmissíveis. E foi então que resolvi estudar o papel dos chás e sucos, que praticamente todas as mães davam para as crianças, mesmo aquelas amamentadas, e descobri o aumento da mortalidade relacionado à administração destes líquidos. Este foi o primeiro estudo sobre esta associação, sendo confirmado posteriormente em outros países. Publiquei meu estudo em 1987, e, a partir dos anos de 1990, as agências internacionais como a OMS e Unicef passaram a recomendar o aleitamento exclusivo durante os seis primeiros meses de vida. “Por isso, nunca é demais enfatizar que o aleitamento é uma responsabilidade da sociedade como um todo. Os profissionais de saúde têm também um papel fundamental na promoção do aleitamento materno e em seu apoio direto para a nutriz”.
SBP AM – Como o aleitamento exclusivo diminuiu a mortalidade infantil?
CV – O aleitamento materno reduz a mortalidade infantil através de três mecanismos. Primeiro, o leite humano contém uma quantidade enorme de substâncias com propriedades imunológicas e antimicrobianas, as quais protegem o bebê contra infecções. Segundo, o leite materno é estéril, e a administração de outros leites através de mamadeira está sujeita a contaminação do próprio leite (in natura ou em pó), da água usada para diluir a fórmula, da mamadeira e do bico. Isso é particularmente perigoso em populações pobres e com más condições de higiene. Terceiro, o leite materno promove o estado nutricional ideal da criança pequena, e crianças bem nutridas são mais resistentes a infecções.
SBP AM – Por que o aleitamento prolongado melhora a saúde e até o Q.I das pessoas?
CV – Há vários mecanismos pelos quais o leite humano pode melhorar a inteligência. O mais conhecido são os LPUFA, ou ácidos graxos insaturados de cadeia longa, que são essenciais para o crescimento do cérebro. Cerca de 70 a 80% do cérebro se forma nos primeiros dois anos de vida. Há também outros mecanismos ligados ao microbioma do bebê amamentado, que recém estão sendo estudados, como a função do intestino de sintetizar substâncias que ativam o cérebro, como serotonina, citoquinas e outros metabólitos.
SBP AM – Quais seriam a idade e o procedimento ideais para fazer a transição do leite materno para água, sucos, outros leites (se é que recomenda outros leites) etc.?
CV – Baseada em pesquisas como as que realizamos aqui em Pelotas, a OMS e o Unicef recomendam o aleitamento exclusivo, sem qualquer outro tipo de líquido ou alimento, até os seis meses de vida. A partir desta idade, o leite materno não supre mais todas as necessidades do bebê, sendo recomendada a continuação da amamentação lado a lado com a ingestão de alimentos como frutas, verduras e proteína animal (carne, galinha etc.). Estas organizações recomendam que o aleitamento continue até os dois anos de vida.
SBP AM – No caso de mulheres que não podem amamentar por algum motivo, qual a recomendação?
CV – São pouquíssimas as mães que realmente não conseguem amamentar. Se a mãe está tendo dificuldades logo após o nascimento, precisa procurar uma conselheira de lactação que possa ajudá-la. Um exemplo é a ONG amigas do peito (http://www.amigasdopeito.org.br/). Se a mãe realmente não conseguir amamentar, sugiro que recorra a um banco de leite humano. O Brasil tem uma rede de mais de 200 bancos nas principais cidades, que podem fornecer leite doado por mulheres que tem uma alta produção.
SBP AM – Utilizar mamadeira pode ser prejudicial ao bebê? Qual seria a melhor técnica para amamentação a ser utilizada por essas mães?
CV – Sim, a mamadeira não é recomendada porque o ato de sugar num bico de mamadeira é completamente diferente do ato de sugar o mamilo da mãe. O uso de mamadeira está associado com maior risco de diarreia (por contaminação) e com deformação da arcada dentária, levando à necessidade de usar aparelhos ortodônticos no futuro. O ideal é alimentar a criança usando uma xícara e uma colherinha. Parece difícil, mas não é. As crianças se alimentam muito bem com este método. O site das amigas do peito tem muitas informações práticas sobre estes assuntos. “Além de reduzir a mortalidade infantil e prevenir o câncer de mama e ovários em mulheres, aumentar os níveis de amamentação infantil reduz custos com tratamento de doenças como pneumonia, diarreia e asma”.
SBP AM – Para muitos, os benefícios da amamentação parecem estar restritos à dupla mãe e bebê. E a sociedade, como ela se beneficia a partir da realização e da manutenção do aleitamento materno?
CV – Nossa série sobre amamentação no The Lancet mostra que amamentar não é importante apenas para a saúde da mãe e do bebê, mas também para reduzir os gastos assistenciais e promover o desenvolvimento social e econômico via aumento da inteligência e da produtividade. Este é um dos principais benefícios para a sociedade, o desenvolvimento de capital humano. Falar de capital humano é falar de pessoas com mais inteligência, escolaridade, capacidade de trabalho. Todo mundo sabe que pessoas mais inteligentes e produtivas ganham mais e geram mais renda para o país. Em nosso trabalho, calculamos qual seria o impacto econômico se todos os indivíduos tivessem sido amamentados por mais tempo. O resultado dessa conta revela um ganho de 302 bilhões de dólares ao ano em todo o mundo. Além de reduzir a mortalidade infantil e prevenir o câncer de mama e ovários em mulheres, aumentar os níveis de amamentação infantil reduz custos com tratamento de doenças como pneumonia, diarreia e asma. De acordo com as estimativas levantadas em nosso estudo, o aumento das taxas de amamentação de crianças de até seis meses de idade a 90% nos Estados Unidos e no Brasil e a 45% no Reino Unido representaria economia para os sistemas de saúde de 2,4 bilhões de dólares nos EUA, 6 milhões de dólares no Brasil e 30 milhões de dólares no Reino Unido, para dar alguns exemplos.
SBP AM – O que poderia ser aprimorado no país para que um número ainda maior de crianças fosse amamentada por mais tempo? Quais são os maiores obstáculos que as famílias e, sobretudo, as mães ainda enfrentam?
CV – A licença-maternidade de pelo menos seis meses deve ser estendida a todas as categorias profissionais – em países escandinavos, por exemplo, a regra é de um ano de licença. Depois de voltar ao trabalho, as mães precisam encontrar as condições necessárias de apoio à manutenção do aleitamento. O ideal é ter creches nas empresas e permitir que a mãe se ausente nos horários da amamentação. Se isso não for possível, é preciso garantir que as mães possam coletar leite durante o horário de trabalho e armazená-lo em geladeira para que a criança o receba no dia seguinte. Isso depende de que a empresa facilite a coleta e o armazenamento do leite. Por isso, nunca é demais enfatizar que o aleitamento é uma responsabilidade da sociedade como um todo. Os profissionais de saúde têm também um papel fundamental na promoção do aleitamento materno e em seu apoio direto para a nutriz.
SBP AM – O senhor tem novas pesquisas em vista sobre o aleitamento? Se sim, poderia contar um pouco?
CV – Esse é um foco contínuo de pesquisa dentro das coortes de nascimento de Pelotas. Nosso grupo de pesquisa mantém as investigações sobre aleitamento, nutrição, crescimento infantil, medidos lá no início da vida, observando e ampliando o conhecimento sobre os efeitos que fatores nutricionais exercem ao longo de toda a vida do indivíduo, não apenas sobre a saúde física, mas também sobre o desenvolvimento cognitivo e a saúde mental. Nós temos quatro gerações em estudo, as coortes de 1982, 1993, 2004 e 2015, e seguimos acompanhando todos esses participantes – que são cerca de 20 mil pessoas - até os dias atuais.
SBP AM – Nesse momento crítico das finanças nacionais, como o professor vê o futuro da ciência brasileira?
CV – Houve um grande crescimento da ciência brasileira nas últimas duas ou três décadas, com investimento das agências nacionais e estaduais de financiamento, que tiveram papel decisivo na criação de uma grande comunidade científica dentro da saúde coletiva. Acho que agora está começando a aparecer esse reconhecimento internacional, e esse meu prêmio é mais um evento disso. Infelizmente, as mudanças recentes nas políticas federais nas áreas de Saúde e de Ciência e Tecnologia estão na contramão deste processo, colocando em séria ameaça todo um trabalho criado ao longo de décadas. Uma questão que está presente agora é a dos cortes orçamentários para saúde e educação. À medida que limita o teto dos gastos é um entrave. Em todo o mundo, os gastos com saúde aumentam mais que a inflação. Comparativamente com outros países, o Brasil investe um percentual baixo do Produto Interno Bruto (PIB). É menor do que a média dos outros países. Teríamos, portanto, que aumentar mais rapidamente o investimento se quiséssemos alcançar o nível dos Estados Unidos e da Europa. Com a restrição orçamentária, isso está realmente ameaçado. Vejo o momento atual com muito receio, pois a continuidade do progresso científico do país está ameaçada por restrições orçamentárias.
SBP AM – Ao olhar sua trajetória científica de quase 40 anos dedicados à saúde materno-infantil e à epidemiologia, o que destacaria como lição para as próximas gerações?
CV – Eu gostaria de ser lembrado por haver realizado pesquisas que efetivamente influenciaram políticas globais e nacionais, e que, portanto, contribuíram para melhorar as condições de saúde de crianças e de mulheres, particularmente aquelas em maior vulnerabilidade social. O fato de que a grande maioria dos países do mundo recomenda o aleitamento exclusivo por seis meses, e de que também adotam as curvas de crescimento baseadas em crianças amamentadas, é para mim – que estive envolvido nestes estudos – a melhor recompensa. Para as próximas gerações de cientistas, recomendo que trabalhem muito para conseguirem realizar pesquisas rigorosas, mas que não percam de vista a função social da ciência.
*Com informações da Assessoria de Imprensa do dr. Cesar Victora
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